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5 Lições Importantes que Podemos Aprender com a Comercialização da Ketamina

5 Lições Importantes que Podemos Aprender com a Comercialização da Ketamina

18 de junho de 2022 9 minutos de leitura

  • Patrícia Marta
  • Ketamina
  • Psicadélicos

A Ketamina disparou em popularidade como o primeiro psicadélico a ser disponibilizado terapeuticamente nos Estados Unidos da América (EUA). Atualmente, os doentes podem ter acesso a infusões de Ketamina e terapia com Ketamina. Contudo, durante o processo de comercialização, os padrões para o tratamento com Ketamina mudaram. O que podemos aprender com a comercialização da Ketamina? De seguida, apresentamos cinco lições.

Desde que se tornou amplamente disponível, a Ketamina melhorou a qualidade de vida de doentes com depressão, ansiedade, perturbação de stress pós-traumático (PTSD) e outros mais. É relativamente segura, atua rapidamente e tem efeitos antidepressivos relativamente sustentados. Pode até ajudar na neuroplasticidade e na formação de novas conexões cerebrais.

Mas a jornada da Ketamina da investigação até à comercialização tem feito alguns desvios interessantes. Desde ensaios clínicos altamente controlados até centros de infusão em ambulatório, temos visto o modo de fornecimento mudar drasticamente.

Aqui fica uma breve sinopse da história, investigação e comercialização da Ketamina.

A História da Ketamina

Nos anos 60, a Ketamina entrou em cena como uma ferramenta para a cirurgia e cuidados intensivos. A sua capacidade de anestesiar doentes sem suprimir a respiração ou frequência cardíaca tornou-a um fármaco relativamente seguro. Era especialmente atraente entre outros medicamentos cirúrgicos da época por ser barata e fácil de administrar.

Os usos da Ketamina evoluíram rapidamente para além da anestesia. É também um analgésico útil para lesões agudas, como queimaduras, e para a dor operatória e pós-operatória. A dor crónica também responde à Ketamina, como enxaquecas, fibromialgia e dor no membro fantasma.

Esta capacidade de tratar a dor rapidamente tornou a Ketamina numa ferramenta essencial em operações militares. Nos anos 70, foi usada como anestésico durante a guerra do Vietname. Aliviava a dor de lesões de combate e era uma excelente medicação pela sua fácil administração e portabilidade.

Durante este período, a Ketamina também começou a atrair um público recreativo mais amplo. A “Special K” ganhou popularidade nos anos 70 e 80 pelos seus efeitos psicadélicos-like. Mas também podia rapidamente causar dissociação, o que a tornou numa droga perigosa para violações. A sua utilização espalhou-se desde a Costa Oeste americana, tornando-se uma substância bem conhecida usada para festas e raves.

Em 1999, a United States Drug Enforcement Agency classificou a Ketamina como substância controlada de Classe III. A partir daí, os usos clínicos e ilícitos da Ketamina diminuíram.

A Ketamina também tem sido usada em animais, tal como outros medicamentos com boa segurança clínica e eficácia em humanos. Provavelmente foi assim que se tornou conhecida pelo público em geral como um tranquilizante para cavalos. É usada hoje como um imobilizador eficaz para cavalos que precisam de tratamento ou avaliação veterinária.

Os efeitos antidepressivos da Ketamina não foram estudados até ao ano 2000, quando se descobriu que ajudava doentes a quem tinham sido prescritos antidepressivos recentemente. Enquanto os antidepressivos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (SSRI’s) podem demorar semanas para aliviar a depressão, a Ketamina funciona muito mais rapidamente.

Mais estudos se seguiram, com a Ketamina aplicada a outros diagnósticos de saúde mental, como ansiedade, dependência de substâncias e PTSD. Grande parte desta investigação focou-se na Ketamina no contexto de terapia, ou psicoterapia assistida por Ketamina (KAP). O processo ocorreu da seguinte forma: • Antes de receberem as infusões, os doentes tiveram oportunidade de desenvolver uma relação terapêutica com o seu terapeuta. • Durante as sessões com Ketamina, os doentes eram geralmente supervisionados, seguidos de sessões terapêuticas para integração. • Após as sessões, os doentes eram apoiados por uma equipa interdisciplinar de terapeutas e médicos.

Esta estrutura permite aos doentes experienciarem os benefícios da Ketamina e a integração e suporte aprimorados que acompanham a terapia de conversação. Sob esta estrutura, a Ketamina teve resultados significativos para diagnósticos de saúde mental.

Atualmente, a Ketamina está incluída na lista de medicamentos essenciais da World Health Organization (WHO) pelas suas propriedades anestésicas. Devido ao sucesso na investigação relacionada com a saúde mental, está agora disponível como um tratamento de saúde mental “off-label” em clínicas na América e, em menor escala, na Europa (incluíndo em Portugal).

É possível ver vários paralelismos entre a terapia com Ketamina e outros psicadélicos, como o MDMA. Esperamos poder pegar na história em evolução da Ketamina e aprender com ela para o futuro. Vamos então às cinco lições que podemos aprender com a comercialização da Ketamina.

1. Os Métodos de Investigação são “Diluídos” pelos Interesses Comerciais

Desde a investigação até à aplicação terapêutica, os modos de fornecer Ketamina mudaram.

Atualmente, muitos centros de infusão em ambulatório não exigem que os doentes passem por sessões demoradas com um terapeuta de Ketamina. Nos EUA, os doentes podem agendar uma infusão de Ketamina em regime de ambulatório e receber a Ketamina através de um médico anestesista ou enfermeiro especializado em anestesia (Certified Registered Nurse Anesthetist – CRNA). Este modelo não inclui o apoio terapêutico ou integração que era um componente essencial da investigação.

Ainda não sabemos de que forma este modelo simplificado afeta os resultados dos doentes. Comparativamente com apenas infusão de Ketamina, receber psicoterapia assistida por Ketamina cria tratamentos muito diferentes para os doentes. Há pouca distinção entre estes dois modelos do lado do doente, mas eles são consideravelmente diferentes.

Existem algumas vantagens no modelo de infusão de Ketamina. Com diversos fornecedores a permitirem o acesso à Ketamina, mais doentes têm oportunidades de experienciar os seus benefícios. As infusões são menos demoradas para os doentes, com muitos fornecedores permitindo alta cerca de uma hora após a conclusão de uma sessão de infusão.

Parte da dificuldade em construir um novo modelo para medicina experiencial é que não temos um precedente de combinar substância com integração. Não há nenhuma exigência para que os fornecedores de Ketamina ajudem os doentes com a integração após a sessão. Esperamos que a Food and Drug Administration (FDA) exija terapia de integração para outros psicadélicos à medida que se tornem disponíveis para terapia.

Se quiseres saber mais sobre terapia com Ketamina vs. infusões de Ketamina, podes ver este artigo.

2. Precisamos de Padrões Terapêuticos de Cuidados na Terapia Psicadélica

A exigência de terapia de integração inclui-se no campo mais amplo dos padrões terapêuticos de cuidados. Tal como acontece com qualquer nova opção de tratamento, os padrões de cuidados terão de ser estabelecidos para definir as expectativas para a terapia psicadélica. Acreditamos que padrões rigorosos ajudarão a reduzir os danos para os doentes e garantirão que alguns requisitos básicos sejam cumpridos por todos os profissionais.

Os padrões de cuidados começam com uma linha de base de educação do clínico, verificada por meio de certificação ou licenciamento. Neste momento, não existe nenhum requisito de educação padrão para os profissionais que oferecem psicoterapia assistida por Ketamina ou infusões de Ketamina. No futuro, esperamos que isto mude.

Por exemplo, a MAPS pretende exigir que todos os fornecedores de MDMA passem por uma formação ceertificada antes de poderem administrar a terapia.

Outro exemplo de padrões terapêuticos de cuidados devem ser as consultas de seguimento após o doente ter completado a terapia. Isto também não é exigido aos clínicos que administram infusões de Ketamina. Sem este componente central da medicina baseada na evidência, não podemos esperar aprender e evoluir com os resultados dos doentes.

Por enquanto, cabe aos fornecedores individuais de Ketamina manterem os padrões de cuidados nas suas próprias práticas. Esperamos que a comercialização para outras terapias psicadélicas inclua mais proteções para os doentes.

3. Nem Todos os Especialistas Concordam com os Padrões de Cuidados

Claro que, para que se estabeleçam bons padrões de cuidados, mais clínicos devem concordar com eles. Isto tem sido desafiante noutras especialidades e continua a ser um desafio na medicina psicadélica.

Alguns médicos não concordam que a terapia com Ketamina deva exigir apoio psicoterapêutico. As guidelines da National Library of Medicine para a administração de Ketamina não mencionam integração ou psicoterapia. Embora muitos não concordem com esta decisão, ela justifica uma conversa entre os profissionais do lado médico e lado psicoterapêutico.

Esperamos que a terapia psicadélica promova uma comunicação interdisciplinar entre as equipas médicas e psicoterapêuticas. Servimos melhor os doentes quando podemos coordenar os cuidados e aprender uns com os outros no processo.

Quando colaboramos, os doentes obtêm melhores resultados. Prevemos que a equipa de co-terapia psicadélica vá ser uma mistura de enfermeiros, médicos e profissionais de saúde mental que se possam unir para oferecer aos doentes os melhores resultados possíveis.

4. Os Clínicos Querem Oferecer Intervenções Psicadélicas

A comercialização da Ketamina resultou na proliferação de novas clínicas de Ketamina por toda a América. Sem o uso de psicoterapia após as infusões de Ketamina, os clínicos, alguns com pouca experiência em saúde mental, ficam excessivamente entusiasmados em oferecer Ketamina aos seus doentes. Enquanto aguardamos por mais padrões de terapia, vemos cada vez mais clínicos a trazerem medicamentos psicadélicos aos doentes.

Este entusiasmo pela Ketamina é encorajador para o campo dos psicadélicos emergentes. No meio de um sistema de saúde mental falhado, a Ketamina tornou-se acessível. Vamos precisar de mais milhares de médicos terapeutas psicadélicos para tornar estas terapias de ponta disponíveis para as massas.

Outras terapias, como o MDMA e a Psilocibina, poderiam experienciar a mesma acessibilidade. A Ketamina mostrou-nos que os clínicos querem oferecer intervenções psicadélicas que possam ajudar os doentes a alcançar uma nova qualidade de vida. Mas, ao mesmo tempo, os motivos de lucro e a falta de padrões clínicos são preocupantes.

5. As Pessoas Estão Recetivas à Terapia Psicadélica

Apesar da sua associação com tranquilizadores de cavalos e drogas de festas, as pessoas estão recetivas à Ketamina. Milhões de americanos experimentaram infusões de Ketamina e terapia nos últimos dois anos. Muitos experienciaram um alívio das doenças mentais que mudou as suas vidas.

O sistema de saúde mental falhado dos EUA deixou tantas pessoas sem opções. Após cursos mal-sucedidos de SSRI’s, anos de terapia mal-sucedida ou múltiplas recaídas no abuso de substâncias, muitas pessoas sentem que estão sem opções. Contudo, estas são exatamente as pessoas que a terapia psicadélica pode potencialmente ajudar.

A história da Ketamina mostrou-nos que estamos preparados para a comercialização de medicamentos psicadélicos. Apesar de décadas de retórica negativa em torno destas substâncias, as pessoas estão interessadas num tratamento de saúde mental que seja diferente dos medicamentos convencionais.

Artigo Original de Marie Hasty, publicado na Psychedelic.Suport a 03/06/2022.

Tradução livre por Patrícia Marta



Patrícia Marta
Patrícia Marta
Médica de Psiquiatria | Membro Satélite SPACE

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