
Ketamina: Um Modelo Unificado com Vista à Sua Utilização em Psicoterapia
3 de junho de 2023 • 12 minutos de leitura
- Pedro Castro Rodrigues
- Ketamina
A ketamina é uma molécula curiosa que, apesar de ter sido considerada a descoberta mais importante no tratamento da depressão dos últimos 50 anos, ainda é vista com alguma desconfiança por muitos sectores da sociedade. Quando se fala em ketamina com a população geral, sobretudo entre jovens adultos, uma reacção típica é alguém perguntar se a substância não é um “anestésico para cavalos”, sendo também frequentemente associada a uso recreativo problemático. Com base num artigo científico de revisão publicado recentemente procuramos aqui descrever o conhecimento atual sobre esta substância e clarificar o seu potencial terapêutico.
Dentro das pessoas que usam psicadélicos em contexto cerimonial, é frequente ser vista como uma substância com pouco interesse, para alguns por ser uma molécula sintética e não de ocorrência natural, para outros pela via de administração ser intranasal, intravenosa ou intramuscular. Relativamente à comunidade médica, mesmo entre clínicos informados sobre a evidência científica que tem sido produzida sobre os seus efeitos antidepressivos, existe a ideia de que esta evidência ainda é pouco sólida (quando na verdade já foram publicados mais de 20 ensaios clínicos positivos) ou que o facto de muitos estudos mostrarem que os efeitos antidepressivos podem ser transitórios indica que não deve ser recomendada. Na comunidade científica, conhecem-se uma boa parte dos seus mecanismos de acção – desde o nível molecular e celular até aos níveis de circuitos e redes cerebrais, incluindo também os níveis fenomenológico e psicométrico – mas a inexistência de um modelo que unifique toda a evidência contribui para que seja visto como um fármaco sobre o qual a informação que temos ainda não é suficiente.
Há ainda dúvidas sobre a melhor forma de utilização clínica da ketamina: muitos clínicos consideram que os seus efeitos psicológicos agudos devem ser vistos como um efeito secundário indesejável. No entanto, no contexto do ressurgimento da psicoterapia assistida por psicadélicos, cada vez mais terapeutas defendem que os efeitos subjectivos da experiência causada pela ketamina são fundamentais para um processo de tratamento ou cura mais sustentado. Apesar de todos estes factores, a ketamina é actualmente a única molécula com propriedades psicadélicas que pode ser legalmente prescrita por um médico, ao contrário dos psicadélicos clássicos que apenas podem ser utilizados em contexto de investigação.
Frasco com ketamina para administração intravenosa ou intramuscular.
Para entender o porquê de tantas divergências, é fundamental começar por analisar o contexto histórico em que surgiu a ketamina. Este antagonista dos receptores NMDA do glutamato foi sintetizado pela primeira vez em 1962 por um químico que trabalhava para o laboratório farmacêutico Parke Davis. Três anos depois, o médico Edward Domino conduziu os primeiros estudos com ketamina em humanos e descobriu que, em doses elevadas, a ketamina podia induzir anestesia geral, mas em doses mais baixas produzia efeitos psicoativos peculiares, com indivíduos descrevendo sentir-se “a flutuar” ou “a pairar sobre o seu corpo”. Nesta época, a meio dos anos 1960 nos Estados Unidos, os psicadélicos clássicos já tinham deixado de ser utilizados apenas em contextos clínicos mas já eram também usados em ambientes pouco controlados pela população em geral. O laboratório Parke-Davis queria evitar denominar a molécular como psicadélica, receando não receber aprovação ou não ter sucesso comercial, e foi por isso que surgiu o termo “anestésico dissociativo”, numa tentativa de descrever a maneira como parecia separar a mente do corpo, mesmo quando a mente mantinha algum grau de consciência. Ao ser aprovado como anestésico (dissociativo) no mesmo ano em que Nixon baniu os psicadélicos (1970), a ketamina ficou com um estatuto legal particular que se mantem até hoje.
Após trinta anos a ser utilizado como anestésico com sucesso (incluindo em medicina veterinária, daí a associação a cavalos), a partir do ano 2000, um grupo de investigadores dos National Institutes of Mental Health, nos Estados Unidos, começou a estudar a administração de cetamina em dose baixa (subanestésica) por via intravenosa, num modelo exclusivamente farmacológico, para o tratamento da Depressão Resistente e os resultados demonstraram elevada eficácia. Estes estudos utilizaram ketamina intravenosa que, para além de eficaz, revelou-se como o primeiro tratamento para a Depressão com efeitos rápidos, verificando-se tipicamente melhoria dos sintomas (incluindo ideação suicida) nas horas seguintes a uma única administração do fármaco – ao contrário dos antidepressivos convencionais (e da electroconvulsivoterapia), que demoram várias semanas a fazer efeito. Quando a administração de ketamina é repetida nas semanas seguintes, a eficácia pode atingir os 70% (em comparação com 10% de um novo antidepressivo após ausência de resposta a dois antidepressivos), o que, de acordo com meta-análises recentes, faz da ketamina o tratamento mais rápido e eficaz para a Depressão Resistente. No entanto, os benefícios deste modelo exclusivamente farmacológico são relativamente temporários, cessando frequentemente após a administração do fármaco ser interrompida. Para além disso, ainda não foram realizados ensaios multicêntricos de fase 3 que possam conduzir a uma aprovação formal. Na verdade, a indústria farmacêutica desenvolveu um derivado, a esketamina (quimicamente, um enantiomero) e produziu todos os ensaios necessários para a sua aprovação, sendo hoje em dia comercializado por valores extremamente elevados.
Curiosamente, a ketamina também tem sido frequentemente classificada como um “psicadélico atípico” (assim como o MDMA) e tem sido produzida evidência que sugere que experiências de dissolução do ego (uma das características distintivas das experiências psicadélicas) durante a administração de ketamina estão associadas a maior resposta antidepressiva. Os estudos de neuroimagem têm também evidenciado várias semelhanças (bem como algumas diferenças) entre os efeitos da ketamina e os efeitos dos psicadélicos serotoninérgicos no cérebro. No entanto, ainda não tinha sido proposto um modelo unificado dos efeitos da ketamina que seja capaz de explicar simultaneamente os níveis molecular, celular, redes cerebrais e psicológico. Num artigo que publicámos no Journal of Psychopharmacology, propusemos um modelo que tenta unificar o conhecimento sobre a ketamina de uma forma coerente.
Figura 1 – Modelo unificado das propriedades da ketamina. Segundo o modelo proposto, a ketamina causa uma modulação aguda dos circuitos de recompensa cerebral que explica os seus efeitos antidepressivos rápidos, que são mantidos durante alguns dias pelo aumento sub-agudo da neuroplasticidade. Ao nível das redes cerebrais, a ketamina modifica de forma aguda os padrões de actividade neuronal na salience network, induzindo uma redução da confiança nas previsões do cérebro sobre o corpo, dando frequentemente origem a uma experiência “dissociativa” transitória. Dependendo da dose, contexto e outros factores, a ketamina pode também modificar de forma aguda os padrões de actividade neuronal na default-mode network, induzindo uma redução da confiança nas previsões do cérebro sobre o nosso ‘Eu’ narrativo/biográfico, dando assim origem a uma experiência “psicadélica” transitória na qual novas perspectivas sobre o próprio podem ser exploradas. A estimulação sub-aguda da neuroplasticidade tem um papel permissivo na estabilização das redes cerebrais num padrão mais adaptativo, algo que idealmente deve ocorrer em contexto psicoterapêutico.
Para compreender o modelo unificado para a acção da ketamina no cérebro proposto no artigo, é importante introduzir alguns conceitos da neurociência da consciência. O processamento preditivo é a teoria dominante na neurociência actual sobre a forma como o cérebro constrói a percepção, o pensamento e a experiência subjectiva consciente. Para entendermos esta teoria, para a qual existe evidência empírica sólida, temos de ter em conta que o cérebro está fechado numa espécie de caixa escura (o crânio) e que tenta descobrir o mundo à sua volta tendo apenas acesso a este de forma indirecta – através de um fluxo constante de impulsos eléctricos que estão apenas indirectamente relacionados com os objectos que existem fora do crânio. A teoria de processamento preditivo propõe que a percepção não é mais do que um conjunto de suposições informadas, tanto pelas suas expectativas (que o cérebro foi construindo ao longo das suas interacções prévias com o ambiente) como pela informação que chega dos orgãos da periferia.
Neste modelo, as expectativas prévias fluem do topo da hierarquia cerebral para a periferia e a informação sensorial apenas ascende na hierarquia cerebral quando é diferente das previsões a cada momento (gerando um sinal de surpresa tipicamente conhecido como prediction error). É desta forma que o cérebro procura as causas que tentam explicar os sinais que recebe, unindo assim conjuntos de sinais que tendem a repetir-se regularmente e a construindo os objectos (ex: cães, árvores, chávenas) que povoam a nossa experiência do ambiente que nos rodeia. Matematicamente, cada previsão/expectativa tem um determinado grau de precisão ou confiança associado, que é codificado pelos padrões de ganho sináptico (ou seja, a “facilidade” com que disparam) dos grupos de neurónios que a codificam. Para além disso, o cérebro parece funcionar de forma hierárquica, em que os níveis mais baixos da hierarquia codificam aspectos perceptivos em escalas espaciais e temporais reduzidas, enquanto os níveis mais elevados da hierarquia codificam aspectos com escalas espaciais e temporais cada vez maiores. A experiência consciente parece assim ser mediada pela passagem hierárquica de informação entre unidades funcionais chave do cérebro, na qual a informação que desce na hierarquia cerebral (top-down) codifica modelos preditivos internos que se desenvolvem para igualar a informação sensorial que sobe na hierarquia (bottom-up).
O modelo REBUS (Relaxed Beliefs Under Psychedelic) tenta explicar a acção dos psicadélicos clássicos/serotonérgicos no cérebro baseando-se na teoria do processamento preditivo. Nesta teoria, para a qual já existe alguma evidência empírica, o estado psicadélico consiste numa desregulação dos mecanismos hierárquicos descendentes (top-down) que codificam as crenças/previsões do cérebro, diminuindo a sua precisão, com a libertação recíproca da informação ascendente (bottom-up). Uma vez que a precisão é sinónimo de confiança num sentido psicológico ou subjectivo, ao diminuir a confiança do cérebro nos seus modelos preditivos internos, os psicadélicos abrem a experiência consciente a um conteúdo mais rico e influenciável por informação ascendente, explicando a fenomenologia específica do estado psicadélico.
Outra teoria interessante e útil para o modelo dos efeitos da ketamina proposto, a predictive self-binding theory, defende que o cérebro constrói a nossa vivência do ‘Eu’ – ou self – criando um objecto interno individualizado e persistente que serve para obter significado e prever padrões de experiência salientes para o próprio. A neurociência da consciência tem vindo a dividir a experiência do self em duas dimensões fundamentais: o minimal ou bodily self, que é caracterizado pela experiência imediata e pre-reflectiva de termos um corpo, e que se pensa ser construído pela actividade sincronizada dos neurónios da salience network; e o narrative ou biographical self, que é caracterizado pela experiência de sermos uma entidade persistente com uma história e uma personalidade próprias, e que se pensa ser construído pela actividade sincronizada dos neurónios da default-mode network.
Representação criativa da estrutura química da molécula ketamina.
No artigo, começamos por rever a evidência científica sobre os efeitos da ketamina a nível molecular e celular. Nesta secção conclui-se que a ketamina aumenta a sinaptógenese, a neurogénese e a espinogénese de forma sub-aguda, um efeito que se inicia poucas horas após a administração da substância, tem o seu pico após 24 horas da mesma e extingue-se ao fim de cerca de 10 dias. Em seguida, são revistos os artigos que estudaram os efeitos da ketamina a nível dos circuitos e redes cerebrais. Em específico, tem sido demonstrado que a ketamina modifica a actividade de algumas redes cerebrais de larga escala (em alguns estudo na default mode network, noutros estudos na salience network), reduz a amplitude dos ritmos alfa em electroencefalografia e aumenta a diversidade de sinal no cérebro (uma medida de complexidade ou entropia). É ainda feita uma revisão narrativa dos estudos com instrumentos psicométricos ou análise qualitativa/fenomenológica da experiência subjectiva com ketamina, havendo alguma evidência de que experiências com características “dissociativas” (sensação de pairar/flutuar) parecem ser atingidas facilmente com doses menores da substância e que experiências com características psicadélicas parecem ocorrer com maior fiabilidade em doses mais elevadas, apresentando ainda uma elevada dependência do contexto. É ainda dado particular ênfase ao facto de não parecer existir correlação sólida entre uma experiência com características “dissociativas” e a eficácia do tratamento na redução dos sintomas, mas já ter sido demonstrada correlação entre uma experiência com características “psicadélicas” e a eficácia do tratamento na redução dos sintomas (tanto em depressão como em adicções).
O modelo proposto tenta unificar os achados provenientes dos diferentes níveis revistos acima (Figura 1). Assim, propõe-se que os efeitos antidepressivos rápidos, e frequentemente transitórios, observados após a administração de ketamina são maioritariamente causados pela modulação aguda dos circuitos de recompensa do cérebro (sobretudo ao nível do núcleo da habenula lateral e do córtex cingulado anterior) e pelo estimulação sub-aguda da sinaptogénese e neurogénese, enquanto que as suas propriedades dissociativas e psicadélicas são causadas pela disrupção aguda das redes cerebrais de larga escala (que é dependente da dose e do contexto).
Do ponto de vista computacional, uma vez que a actividade sincronizada dos neurónios que compõe a salience network codifica as previsões/modelos do cérebro sobre o corpo (‘minimal self’ / ‘Eu corporal’) e actividade sincronizada dos neurónios que compõe a default mode network codifica as previsões/modelos do cérebro sobre a experiência auto-narrativa (‘biographical self’ / ‘Eu biográfico’), propõe-se que a dessegregação e desintegração transitória da salience network dá origem à experiência ‘dissociativa’ da ketamina, enquanto que a dessegregação e desintegração transitória da default mode network dá origem à experiência ‘psicadélica’ da ketamina.
Em psicoterapia assistida por psicadélicos, pensa-se que uma redução da confiança nas crenças auto-narrativas/biográficas com suporte psicoterapêutico pode permitir uma revisão de modelos patológicos de representação do ‘Eu’ e da sua relação com os outros, tendo a neuroplasticidade aumentada um papel permissivo nessa revisão. No artigo é ainda proposta uma perspectiva conciliadora entre o “debate” sobre a importância relativa da experiência psicadélica versus o aumento da neuroplasticidade nos efeitos terapêuticos: sugere-se um papel complementar entre a modificação aguda dos padrões de ganho sináptico nas áreas mais elevadas da hierarquia cerebral (que dá origem à experiência psicadélica e permite ao indivíduo explorar hipóteses alternativas sobre si próprio) e a estimualação da neuroplasticidade que ocorre nos dias seguintes, permitindo que a estabilização das redes cerebrais num modelo mais adaptativo (ou em vários) ocorra ao longo do processo psicoterapêutico. Este modelo fornece assim um racional unificado para utilizar as propriedades psicadélicas da ketamina com o objectivo de aumentar os seus benefícios a longo-prazo.
Post original do autor. Publicado originalmente na SafeJourney em janeiro 2023.

Pedro Castro Rodrigues
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