
Porque é que a Revolução da Ketamina está a parar – e como salvá-la
27 de julho de 2022 • 10 minutos de leitura
- Patrícia Marta
- Ketamina
- Psicadélicos
É difícil imaginar um mundo sem depressão. No século XXI, a depressão pode afetar uma em cada 10 pessoas. Contudo, para mais de 30% dos que são afetados, os medicamentos antidepressivos não funcionam: têm aquilo a que os médicos se referem como “depressão resistente ao tratamento”. E este não é um problema pequeno. Centenas de milhões de pessoas não respondem favoravelmente a antidepressivos como a Fluoxetina. Atualmente, os sintomas depressivos resistentes continuam a ser um desafio crítico na Psiquiatria, enquanto os cientistas e companhias farmacêuticas procuram novas abordagens.
Foi esta investigação que levou à recente redescoberta da Ketamina, um anestésico e psicadélico que ressuscitou a estagnação de décadas dos medicamentos psiquiátricos. Alguns estudos afirmam que uma dose única desta droga recreativa dos anos 1960’s pode “derreter” os sintomas de depressão refratária numa questão de horas. Pessoas que sofreram de depressão resistente ao tratamento durante anos relatam que tomar Ketamina levantou o peso que antes as mantinha “presas na cama como a gravidade”. A Ketamina deu-lhes uma sensação de esperança, clareza e novas possibilidades.
Mas a Ketamina não é nenhuma bala mágica. O hype inicial foi seguido por uma série de estudos a questionar a eficácia da Ketamina e a levantar receios de que os seus efeitos secundários, incluindo distúrbios psiquiátricos, possam piorar com o uso repetido. Existe uma preocupação crescente sobre o poder de permanência da Ketamina como antidepressivo. O que será necessário para que este anestésico dissociativo faça a transição de uma panaceia sensacionalista para um antidepressivo útil? Qual é a trajetória futura da Ketamina?
A primeira coisa a entender é que o uso de Ketamina para tratar a depressão não é nenhuma novidade. Em 1973, dois médicos iranianos na Universidade de Pahlavi em Shiraz publicaram o primeiro relato científico a mostrar que a Ketamina podia aliviar a depressão e ansiedade. Os dois médicos estudaram os efeitos da Ketamina usada em conjunto com psicoterapia em 100 doentes que estavam internados por uma variedade de sintomas psiquiátricos (excepto psicose). Os médicos reportaram uma redução na depressão e ansiedade na maioria dos doentes e que, notavelmente, permaneceu evidente até um ano depois. Sob a influência da Ketamina, os doentes pareciam desconectados do seu ambiente e aparentavam perder a noção do tempo. Mas também se tornavam eloquentes, o que ajudava na psicoterapia quando as memórias inconscientes e reprimidas eram ativadas e os doentes eram temporariamente transportados de volta aos eventos da infância que podem ter levado à sua doença.
No entanto, apesar de ter sido publicado numa revista científica de língua inglesa, este estudo passou despercebido aos psiquiatras fora do Irão, talvez porque os medicamentos antidepressivos se estavam a tornar no método preferido para tratar a depressão na época. Um ano após a investigação iraniana ter sido publicada, um estudo americano reportou a descoberta da Fluoxetina, que mais tarde se tornaria comercializada como “Prozac”. Os antidepressivos como a Fluoxetina – geralmente classificados como um SSRI (inibidor seletivo da recaptação da serotonina) ou um SNRI (inibidor da recaptação da serotonina e noradrenalina) – revolucionaram o tratamento da depressão. Eles ajudaram a avançar a ideia de que a depressão é um “desequilíbrio químico” no cérebro, que pode ser tratado com medicamentos que restauram o equilíbrio. Embora essa versão simplificada de como estes medicamentos funcionam seja cientificamente questionável, os seus efeitos positivos nos sintomas depressivos têm-lhos sustentado como tratamentos de primeira linha.
Aproximadamente 60-70% das pessoas respondem a medicamentos como a Fluoxetina. Uma taxa de eficácia tão alta é impressionante para qualquer medicamento, quanto mais para um medicamento psiquiátrico. Mas consideremos a taxa de falhas: mais de 30% não irão responder aos antidepressivos. Isto equivale a centenas de milhões de indivíduos que são resistentes ao tratamento e continuam a sofrer, o que levou à investigação contínua por cientistas individuais e empresas farmacêuticas por novas abordagens para tratar aqueles que permanecem resistentes ao antidepressivos-padrão.
Avançando rapidamente desde 1973, quando o relatório iraniano sobre a Ketamina passou despercebido, até ao ano 2000, quando um estudo de Yale mostrou que uma pequena dose única de Ketamina pode atenuar os sintomas de depressão. Este estudo envolveu um pequeno grupo de 7 doentes e faltou-lhe um controlo placebo, mas foi notável mesmo assim, porque questionou a suposição aceite de que os antidepressivos demoram várias semanas a fazer efeito – a Ketamina parecia precisar de apenas algumas horas. Nos anos seguintes, vários estudos em larga escala e bem controlados demonstraram como a Ketamina afeta os doentes com depressão resistente ao tratamento. Embora a Ketamina parecesse ter apenas um efeito modesto nos sintomas resistentes, foi o suficiente para convencer a US Food and Drug Administration e a European Commission. Em 2019, aprovaram a (Es)Ketamina para o tratamento da depressão.
A aprovação causou muita excitação e hype, com o jornal The Washington Post a apelidar a Ketamina de “o maior avanço para a depressão em anos”. O hype capacitou clínicas privadas com fins lucrativos e spas de “bem-estar” a oferecer infusões de Ketamina para tratar a depressão a preços exorbitantes. A extensão do uso off-label de Ketamina nesses pontos de venda é difícil de determinar, mas esta é uma indústria em expansão: existem mais de 100 destes pontos de venda apenas na América do Norte. Geralmente oferecem uma atmosfera de spa com cadeiras confortáveis onde um único tratamento de Ketamina (administrada por via intravenosa) pode custar até 800 dólares. Muitos doentes retornam para múltiplos tratamentos.
Apesar da ampla disponibilidade da Ketamina para tratar a depressão, não foi a bala mágica que muitos esperavam. Ensaios clínicos mais recentes mostraram efeitos fracos ou não-significativos no alívio dos sintomas, aumentando a evidência anedótica de que a Ketamina não funciona. E porque temos dados limitados sobre como o uso repetido de Ketamina pode influenciar a função do cérebro humano, há preocupações acerca do seu uso repetido e não-regulamentado em indivíduos vulneráveis. Algumas pessoas estão a pagar muito dinheiro por múltiplas infusões de Ketamina. A necessidade de administrar Ketamina repetidamente para manter os seus efeitos antidepressivos dificilmente é mencionada em reportagens dos media ou comunicados de imprensa.
Apesar destas preocupações, a Ketamina tem, de facto, efeitos antidepressivos impressionantes em algumas pessoas que são resistentes a outros tratamentos. O que explica esta variabilidade de efeito? Talvez não a estejamos a usar corretamente. Talvez os problemas apareçam quando usamos a Ketamina para tratar a depressão da mesma forma que usamos a Aspirina para tratar uma cefaleia: porque não se pode tomar apenas uma dose e sentir os sintomas a desaparecerem?
A resposta pode vir do estudo original de 1973 no Irão. Embora claramente a precisar de replicação, esta investigação mostrou efeitos positivos que foram notavelmente duradouros. O que distingue esse estudo inicial daqueles deste milénio é o facto da Ketamina ter sido administrada em conjunto com psicoterapia. Isto é apoiado por alguns estudos recentes que mostram que as reações subjetivas e emocionais à Ketamina predizem quão bem os sintomas da depressão são tratados. A eficácia antidepressiva da Ketamina pode estar relacionada com o estado emocional e afetivo dos indivíduos no momento em que recebem a substância. Relatos de ansiedade e outros sentimentos negativos durante a experiência com a substância previram um resultado negativo, enquanto que relatos de sentimentos positivos previram um resultado positivo.
Para onde vamos daqui?
Para perceber como pode ser o futuro da Ketamina, é importante entender que a maioria das drogas psicotrópicas têm um ciclo de vida distinto. Este geralmente começa com o hype e entusiasmo inicial quando um medicamento é introduzido, que pode ser seguido por preocupações com efeitos colaterais emergentes e eficácia clínica abaixo do esperado. Se os efeitos secundários e a baixa eficácia não forem graves o suficiente para levar à retirada da substância do mercado, esta entrará na fase final do ciclo: permanecendo em uso, mas com uma capacidade mais limitada do que se esperava inicialmente. A Ketamina está a seguir este padrão. O entusiasmo inicial está a diminuir e os resultados de ensaios clínicos mais recentes permanecem mistos. A maioria dos estudos recentes, incluindo aqueles com grandes coortes de doentes e grupos placebo, relataram que a Ketamina tem pouco ou nenhum efeito no alívio dos sintomas da depressão resistente ao tratamento.
Também fazendo com que esse entusiasmo diminua são as preocupações acerca dos efeitos secundários. Doentes com sintomas resistentes frequentemente recebem infusões duas ou três vezes por semana durante uma duração indefinida, aumentando os receios sobre o impacto de semanas ou até meses de uso repetido. As preocupações são justificadas, pois não há dados de segurança a longo prazo sobre o uso repetido de Ketamina. Não obstante, podemos reunir pistas sobre possíveis efeitos adversos daqueles que usam Ketamina cronicamente de forma ilegal. Estes efeitos colaterais incluem dependência, sintomas psiquiátricos (como alucinações e delírios sustentados) e consequências potencialmente graves para o fígado, órgãos reprodutores e trato urinário. Alguns experienciam também a “síndrome da bexiga de ketamina”, que envolve dor ao urinar, incontinência urinária e outros efeitos – por vezes irreversíveis – de danos na bexiga.
Em termos do ciclo de vida da substância, estes potenciais efeitos adversos podem levar a visões mais negativas da Ketamina, reduzindo o seu uso e popularidade. Até em indivíduos que respondem bem ao medicamento, estes efeitos secundários podem exigir que os tratamentos sejam interrompidos. Para alguns doentes, mesmo o uso limitado de Ketamina pode não ser adequado, apesar de tratar eficazmente a sua depressão.
Voltando ao estudo iraniano de 1973, pode haver um resultado mais favorável para o uso de Ketamina se considerarmos o seu potencial quando combinado com psicoterapia. Não nos podemos esquecer de que a Ketamina não funciona da mesma maneira que os antidepressivos tradicionais. Com esses medicamentos, os doentes respondem geralmente após várias semanas de tratamento. Mas a Ketamina funciona relativamente rápido, sugerindo que está a influenciar sintomas depressivos ao explorar mecanismos cerebrais que não são afetados pelos antidepressivos tradicionais. Para além disso, as causas biológicas e ambientais da depressão podem ser diferentes para os que respondem à Ketamina comparativamente com os que respondem a outros medicamentos. Ao pedir aos doentes que tomem Ketamina e esperem que os seus sintomas melhorem – tratando a Ketamina como um antidepressivo tradicional –, podemos ter limitado a nossa capacidade de entender como é que ela está a funcionar.
No futuro, deve haver uma apreciação de que os efeitos da Ketamina podem não ser diretos. Uma abordagem poderia ser administrá-la juntamente com psicoterapia em doentes resistentes ao tratamento. Esta abordagem foi bem-sucedida no estudo original de 1973 e tem sido usada para o tratamento da depressão e ansiedade com outras substâncias psicoativas como o MDMA e a psilocibina. Ao contrário dessas substâncias, que são amplamente regulamentadas e não estão prontamente disponíveis para uso clínico, a Ketamina é facilmente adquirida por médicos, potencialmente tornando mais prático o seu uso como adjuvante terapêutico da psicoterapia.
A depressão é uma das principais causas de incapacidade em todo o mundo. Também é fatal. Aumenta as taxas de diabetes e doença cardíaca e está associada a taxas significativamente aumentadas de suicídio. O uso limitado de Ketamina juntamente com psicoterapia pode fornecer um tratamento seguro, viável e eficaz para a depressão quando outros tratamentos falharam. Pode não ser o medicamento milagroso que muitos esperavam, mas o seu ciclo de vida ainda não terminou. E para aqueles que continuam resistentes a outros antidepressivos, a Ketamina pode ser um salva-vidas.
Artigo Original de Bita Moghaddam, publicado na Psyche a 04/07/2022.
Tradução livre por Patrícia Marta

Patrícia Marta
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