Ayahuasca
A Ayahuasca é uma decocção pan-amazónica a partir de duas plantas, geralmente a Psychotria viridis, um arbusto da família do café, e uma liana do género Banisteriopsis, sendo a espécie caapi aquela mais frequentemente utilizada.
Trata-se de uma designação em língua Quéchua composta por dois étimos - aya, espírito, e huasca, liana ou vinha -, sendo habitualmente traduzida como a vinha dos espíritos ou a trepadeira das almas, apresentando diversas outras designações em conformidade com a região geográfica onde é produzida.
Esta bebida apresenta manifesta propriedades psicoativas, através da combinação entre do composto N, N-dimetiltriptamina (DMT) presente nas folhas de P. viridis e os alcalóides harmala e harmalina existentes na casca do caule da videira B. caapi que permitem a absorção do DMT no organismo pelo seu efeito inibidor da IMAO.
Apesar de originalmente usada por xamãs amazónicos em cerimónias e por curandeiros populares para uma variedade de queixas psicossomáticas, o interesse científico e popular pela Ayahuasca tem vindo a incrementar nas últimas décadas.
- Princípio ativo N, N-dimetiltriptamina (DMT), presente nas folhas de P. viridis, é estruturalmente semelhante ao neurotransmissor serotonina (5-HT).
- Quando ingerido por via oral, a DMT não produz efeitos psicoativos, o que se deve à sua degradação pela MAO-A presente no sistema digestivo. Este feito é, contudo, inibido pela ação das ß-carbolinas presentes na videira B. caapi, permitindo assim que a DMT atinja o Sistema Nervoso Central e produza efeitos subjetivos.
- Estes efeitos subjetivos e neurofisiológicos decorrentes da ingestão aguda de Ayahuasca são maioritariamente mediados pela ação agonista da DMT nos recetores 5-HT2A expressos em áreas cerebrais paralímbicas e frontais, incluindo a Default Mode Network (DMN).
- As ß-carbolinas harmina, tetrahidroharmina (THH) e harmalina constituem inibidores reversíveis da enzima monoaminooxidase-A (MAO-A), sendo que a THH também apresenta atividade inibitória seletiva da recaptação de serotonina.
- Os mecanismos de ação responsáveis pelas propriedades terapêuticas das ß-carbolinas não se encontram completamente esclarecidos e possivelmente envolverão outros mecanismos além do sistema serotoninérgico, entre os quais a mediação do stresse oxidativo, modulação do BDNF e aumento nos níveis de glutamato.
- A evidência científica atual sugere segurança e boa tolerabilidade após a administração/consumo agudo e de longo prazo de Ayahuasca em humanos. No entanto, os efeitos da Ayahuasca no organismo não estão completamente elucidados, não sendo possível afirmar de forma definitiva, com total rigor científico, que o seu uso é seguro e isento de riscos valorizáveis.
- Existe evidência e consenso de que a Ayahuasca, em contexto clínico, é segura, apresentando uma tolerabilidade aceitável ao nível neurofisiológico, neuroendócrino, cardiovascular, autonómico, bioquímico, imunológico e metabólico.
- Alguns dos efeitos adversos da toma de Ayahuasca são as náuseas e vómitos sendo que, em geral, esses efeitos purgativos são considerados positivos pelos participantes, geralmente interpretados como um ritual de “limpeza” e com propriedades catárticas.
- Estudos envolvendo indivíduos que utilizam comummente esta substância em contextos religiosos demonstraram que o seu consumo não parece provocar alterações patológicas significativas do ponto de vista quer psicológico/psiquiátrico quer físico.
- Não há nenhum estudo científico publicado ou relato de intoxicações graves causadas pela Ayahuasca per se.
- À semelhança de outras substâncias psicadélicas triptamínicas, esta também não é considerada uma substância aditiva, não tendo sido observada tolerância ou indução de sintomas de abstinência em qualquer estudo científico realizado com humanos.
- Os diferentes tipos de ambientes ou contextos (setting) em que a Ayahuasca ou a DMT são administrados ou ingeridos, constitui uma variável importante na avaliação da ocorrência de experiências adversas ou desenvolvimento de sintomatologia psiquiátrica significativa.
- O uso da substância em contextos controlados como em rituais religiosos estruturados, assim como em ensaios clínicos apontam para uma maior segurança já que existe, de alguma forma, uma triagem, preparação, orientação e integração dos indivíduos e respetivas experiências com a substância.
- Existem pontuais relatos de efeitos adversos ou até de fatalidades em contexto de Ayahuasca, incluindo um alegado homicídio durante uma cerimónia na selva peruana. Todavia, as circunstâncias em que ocorrerão estes infortúnios não são, de todo, claras e podem estar relacionadas com a adição de outras substâncias com maior toxicidade à decocção ou, por outro lado, a uma triagem inadequada de indivíduos que possam apresentar comorbilidades significativas ou apresentar interações medicamentosas potencialmente nefastas.
- Nunca foi reportada qualquer fatalidade durante estudos clínicos.
- Foi descrito um único relato de caso de uma viragem maníaca num paciente com Perturbação Afetiva Bipolar (PAB) que terá usado esta substância numa cerimónia aquando uma fase depressiva.
- A psicose induzida por Ayahuasca constitui um fenómeno considerado raro, porém tem vindo a ser reportado em recentes relatos de caso. Os episódios psicóticos estão aparentemente associados a vários fatores, e não apenas à ingestão de Ayahuasca ou DMT. Muitos dos casos envolveram indivíduos com história pessoal ou familiar de psicose ou PAB.
- O uso simultâneo de Ayahuasca com substâncias e/ou fármacos pró-monoaminérgicos e serotoninérgicos pode aumentar a probabilidade de precipitação de uma síndrome serotoninérgica, ainda que haja declarada controvérsia neste tópico.
- A Ayahuasca apresenta um risco de interações medicamentosas, como inibidores seletivos da recaptação da serotonina (SSRI), inibidores da MAO ou outros agentes serotoninérgicos, incluindo antidepressivos tricíclicos, inibidores da recaptação da serotonina e noradrenalina (SNRI), trazodona e Erva-de-São-João (Hypericum perforatum). Outros fármacos não antidepressivos como o lítio, triptanos, metoclopramida, levodopa, fentermina, pseudoefedrina, linezolida, metadona e dextrometorfano devem também ser evitados, tendo em conta deterem também efeitos serotoninérgicos. Substâncias psicoativas da família das feniletilaminas (MDMA, mescalina, compostos 2C) e das triptaminas (LSD, 5-MeO-DMT, psilocibina), assim como mefedrona ou metilona, constituem combinações de alto risco, tendo inclusivamente já sido relatadas fatalidades em contextos recreativos.
- Embora não tenham ainda sido descritos efeitos da ingestão de alimentos ricos em tiramina em indivíduos com uso de Ayahuasca, a extrapolação do seu efeito com os fármacos IMAOs sugere um risco aumentado de crise hipertensiva - neste sentido a dieta tem especial importância.
- Com salvaguarda à alteração ao nível da pressão arterial sanguínea, recomenda-se particular atenção à utilização desta substância pacientes com hipertensão ou patologia cardiovascular. Pessoas que apresentem também disfunções hepáticas ou neurológicas provavelmente apresentarão maior probabilidade de sofrer uma reação adversa relacionada com o uso de Ayahuasca.
Perturbações do Humor
- Os mecanismos através dos quais a Ayahuasca exerce o seu efeito antidepressivo assentam no reforço da ação serotoninérgica, promovido ao nível dos recetores serotoninérgicos pela DMT e, possivelmente, pelas β-carbolinas (que também promovem a inibição da MAO-A), aumentando, consequentemente, a disponibilidade de serotonina e de outras monoaminas envolvidas na etiologia da depressão.
- O aumento dos níveis de BDNF obtido nos estudos pré-clínicos, assim como a diminuição de atividade em certas zonas da DMN também podem explicar as propriedades antidepressivas desta decocção.
- O ensaio clínico de Sanches et al. (2016) mostrou que uma única dose de Ayahuasca apresentou efeitos ansiolíticos e antidepressivos de ação rápida em 6 pacientes com depressão recorrente, avaliados através da aplicação de escalas psicométricas 30 minutos antes e 1, 7 e 21 dias após a administração da decocção.
- Um ensaio clínico duplo-cego, randomizado e controlado por placebo de Palhano-Fontes et. al (2019) avaliou em 29 pacientes com depressão resistente ao tratamento (DRT) os efeitos de uma dose única de Ayahuasca, avaliando mudanças na gravidade da depressão através da aplicação das escalas HAM-D e MADRS no início do estudo e 1, 2 e 7 dias após a intervenção.
- O ensaio clínico open-label de Zeifman et. al (2021) procurou examinar o efeito da uma toma única desta decocção na ideação suicida de indivíduos com depressão major. Os autores evidenciaram reduções agudas rápidas (40, 80, 140 e 180 minutos após a administração) e pós-agudas sustentadas (1, 7, 14 e 21 dias após a administração) na ideação suicida dos participantes, com maior efeito 21 dias após a intervenção, assim como uma redução significativa de outros sintomas depressivos.
Perturbações de Ansiedade
- O facto de as preparações de Ayahuasca conterem DMT e alcaloides que inibem tanto a recaptação da serotonina quanto a MAO-A sugere que esta decocção pode atenuar os estados de ansiedade.
- Um estudo duplo-cego mostrou uma redução estatisticamente significativa dos parâmetros de desesperança, desespero e pânico após ingestão aguda de Ayahuasca. Contudo, a ingestão parece não ter afetado os traços de ansiedade determinados pela escala STAI.
Perturbações do Uso de Substâncias
- De acordo com uma revisão sistemática de Nunes et al. (2016), a Ayahuasca parece apresentar potencial terapêutico no tratamento de perturbações do uso de substâncias e, quando usada em contextos controlados, não parece acarretar riscos de abuso ou dependência.
- Estudos pré-clínicos em roedores relataram reduções na autoadministração de anfetaminas e nos níveis de ansiedade, enquanto que estudos observacionais em indivíduos saudáveis com uso ritualístico de Ayahuasca e pacientes com perturbações do uso de substâncias relataram reduções no uso de substâncias, ansiedade e depressão, bem como aumento na qualidade de vida e bem-estar.
- Liester & Prickett (2012) formularam várias hipóteses para explicar as propriedades antiaditivas da Ayahuasca, entre as quais o facto de esta promover uma redução dos níveis de dopamina e diminuir a atividade na via dopaminérgica mesolímbica, reduzindo a recompensa associada a uma substância potencialmente aditiva, reforçando conjuntamente que o agonismo do recetor 5-HT2A – também promovido pela DMT - é reconhecido por inibir a libertação de dopamina nas vias mesolímbica, nigroestriatal e mesocortical. Além disso, a redução da dopamina nas vias de recompensa prejudica a plasticidade sináptica envolvida no desenvolvimento e manutenção da adição.
- Outra hipótese tem a ver com os níveis aumentados de prolactina dos utilizadores frequentes desta decocção, constituindo a dopamina o regulador primário da libertação de prolactina, atuando de forma inibitória.
- Ademais, os autores apontam outros fatores também relevantes para estas propriedades antiaditivas, nomeadamente o papel da experiência mística e o facto de a introspeção, autorrealização e conscientização de traumas passados proporcionados por uma experiência com Ayahuasca oferecerem melhor compreensão das consequências e melhor tomada de decisão, capacitando o indivíduo de se abster de consumos.
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