Reconsiderando os Psicadélicos: reflexões sobre drogas e cultura
22 de abril de 2023 • 9 minutos de leitura
- Pedro Mota
- Psicadélicos
- Sociedade
Pontos-chave: • Evidência científica sugere que os psicadélicos podem ter valor terapêutico no tratamento de depressão major, sofrimento no fim da vida e perturbações de adição.
• Após anos de desinvestimento, a ciência ainda está procura explicar de que forma as terapias psicadélicas podem ser usadas e como elas funcionam.
• Uma promessa fundamental das terapias psicadélicas é o seu potencial para introduzir uma visão mais holística da medicina e da psicologia.
A ciência psicadélica floresceu nos últimos anos, expandindo-se para investigar um subconjunto de substancias atualmente consideradas como ilícitas mas que apresentam potencial terapêutico para uma série de condições psíquicas.
Por mais de uma geração, a investigação nesta área permaneceu suspensa, em grande parte devido ao estigma em torno das substâncias e à bagagem política relacionada ao uso recreativo na década de 1960. Notavelmente, John Ehrlichman, conselheiro de política nacional durante o governo Nixon, admitiu publicamente as motivações políticas por trás da Lei de Substâncias Controladas, que tornou a canábis e os psicadélicos ilegais nos Estados Unidos em 1970, dizendo:
A campanha de Nixon em 1968, e a Casa Branca de Nixon posteriormente, tinham dois inimigos: a esquerda antiguerra e os negros... os hippies com marijuana e os negros com heroína; criminalizando ambos de forma severa, poderíamos desorganizar essas mesmas comunidades. Poderíamos prender os seus líderes, invadir as suas casas, interromper as suas reuniões e difamá-los noite após noite nos noticiários televisivos. Sabíamos que estávamos a mentir sobre as drogas? Claro que sim.
Desse ponto de vista, a criminalização dos psicadélicos pode ser vista mais como um infeliz dano colateral alimentado por agendas politizadas e não por políticas públicas baseadas em evidência científica. Além disso, com o crescente tabu em torno dos psicadélicos que se tornaram um fenómeno cultural durante a tumultuada década de 1960, a investigação científica sobre psicadélicos também se tornou insustentável até aproximadamente ao virar do século. Além disso, as leis que colocaram os psicadélicos na Tabela I – a classe mais restrita de drogas, considerada de alto potencial de abuso e sem qualquer valor clínico – estão agora a voltar a ser questionadas, uma vez que a evidência crescente nesta área sugere que essas substâncias podem de facto apresentar valor terapêutico no tratamento de várias doenças. incluindo depressão major, angústia de fim de vida em pacientes gravemente doentes e, ironicamente, perturbações de adição.
Então como passámos da mentalidade proibicionista do “just say no!” do final do século 20 para o cenário atual de mudança na perceção pública e crescente investigação científica a nível mundial (incluindo estudos financiados pelo próprio governo norte-americano) sobre os psicadélicos? As próprias substâncias não mudaram. Embora novas substâncias psicoativas e compostos químicos relacionados certamente tenham surgido nesse intervalo, os “psicadélicos clássicos” – LSD, psilocibina, mescalina e DMT (encontrada na Ayahuasca) – permanecem os mesmos de sempre.
Como explicar o interesse renovado nos psicadélicos?
A atual onda de interesse renovado parece alimentada por uma confluência de fatores históricos e culturais. Assim como os movimentos antiguerra, de direitos civis e de libertação das mulheres da década de 1960 pressionaram por reforma e progresso social, os seus ecos nos atuais movimentos Black Lives Matter e Me Too destacam a luta contínua para alcançar uma sociedade justa e equitativa. Preocupação crescente com as mudanças climáticas; sentimentos de alienação de nós-mesmos, uns dos outros e do mundo natural; uma pandemia global; e todas dúvidas sobre a integridade das nossas próprias estruturas sociais também ajudaram a preparar o terreno para questionar as narrativas anteriores sobre os riscos e valores relativos dos psicadélicos.
Ao mesmo tempo, a canábis, que durante anos foi considerada uma droga de elevado risco para a saúde, tem vindo a criar aceitação como substância tanto para uso médico como recreativa em grande parte dos Estados Unidos. Enquanto isso, as crescentes preocupações com a saúde mental levaram a uma ampla intervenção farmacêutica, sendo que um em cada seis americanos tomam ou tomaram psicofármacos no último ano. Atendendo à limitação de não terem vindo a ser desenvolvidos novos tratamentos eficazes no campo da saúde mental nas últimas décadas, bem como uma tendência crescente para tratamentos “naturais” em vez de produtos farmacêuticos sintéticos fabricados em massa, os psicadélicos parecem prestes a ser adotados como a próxima grande tendência de bem-estar.
Mas depois de anos de inatividade, a ciência ainda se está a desenvolver de forma a conseguir explicar de que forma as terapias psicadélicas podem ser usadas e como elas funcionam. Chavões como neuroplasticidade e Default Mode Network têm vindo a capturarar a imaginação pública e científica e justificam estudos mais aprofundados para elucidar os caminhos biológicos que conduzem aos efeitos peculiares dos psicadélicos, que parecem conter potenciais terapêuticos transdiagnósticos. Embora os sintomas e a sinalização neuroquímica envolvidos em diversas condições como depressão, ansiedade, dependência de substâncias, obsessões, compulsões e afins possam parecer diferentes, a opinião do autor é que eles geralmente compreendem as nossas próprias expressões biopsicossociais únicas de aceitar a nossa própria iminente mortalidade.
Um insight que a experiência psicadélica parece particularmente bem posicionada para evocar é precisamente o confronto de enfrentar a nossa morte. Como Marco Aurélio observou poeticamente: “Rapidamente, a lembrança de todas as coisas é enterrada no abismo da eternidade”, e psicadélicos em altas doses podem conduzir a essa perceção de uma maneira profunda e visceral, frequentemente fornecendo informações e perspetivas úteis para recalibrar os nossos pensamentos e comportamentos.
Em última análise, a capacidade de concentrar a atenção na neuroquímica destas substâncias e na psicopatologia pode ser vista como uma forma de privilégio científico que regularmente descarta os fenómenos socioculturais mais amplos subjacentes às condições psiquiátricas. Essa abordagem reducionista traduz uma miopia que se concentra profundamente em explicações como sejam os desequilíbrios químicos a nível cerebral e evita questões como a pobreza, educação inadequada, insegurança alimentar, falta de assistência médica, isolamento e um sentimento palpável de pavor coletivo sobre o futuro da nossa espécie e do planeta que também poderão contribuir para um impacto negativo na saúde mental. Esse tipo de “visão em túnel” está diretamente em desacordo com os axiomas de interconexão e unidade que estão no cerne de tantas experiências psicadélicas profundas e transformadoras.
O que podemos esperar do futuro da investigação psicadélica?
Quanto ao próximo destino da investigação psicadélica, o autor destaca algumas direções importantes. Primeiro, ensaios clínicos de Fase 3 bem planeados devem ser conduzidos para estabelecer a eficácia terapêutica para condições que já se mostram promissoras (por exemplo, depressão, ansiedade, adições). Isso abrirá caminho para a aprovação e reprogramação do FDA e reduzirá o custo e a carga regulatória de investigações futuras. Em segundo lugar, em áreas com base empírica ou teórica sólida, estudos exploratórios de psicadélicos para novas indicações, como perturbações neurodegenerativas e outras condições com necessidade urgente de novos tratamentos, devem surgir de forma a potencialmente apoiar a sua eventual eficácia.
Em terceiro lugar, a investigação sobre as melhores práticas para a terapia psicadélica é necessária para estabelecer parâmetros para otimizar a segurança e os resultados positivos. Este será um bom ponto de partida, assente em décadas de investigação clínica com psicadélicos, com a maioria dos voluntários a relatarem benefícios duradouros; porém, determinar exatamente como adaptar esses tratamentos e implementá-los amplamente será fundamental para formar os médicos a realizar este tipo de intervenções de forma adequada e a levá-las até aos doentes que deles poderão beneficiar.
Finalmente, os mecanismos biológicos e psicológicos subjacentes aos psicadélicos e o seu eventual uso para em pessoas saudáveis (por exemplo, para aumentar a criatividade) devem continuar a ser melhor estudados. Novamente, isso traz-nos de volta às questões socioculturais, fontes de financiamento para conduzir tais ensaios e acesso equitativo a terapias psicadélicas, caso venham a ser aprovadas. No entanto, a investigação nesta área encontrou uma forma de persistir e florescer, ainda que lentamente, com perseverança e a ajuda de filantropos que olham para o futuro.
Por enquanto, muita incerteza permanece em torno das direções em que este renascimento psicadélico nos poderá levar. Para muitos pacientes, os psicadélicos podem conduzir a novas e poderosas formas de terapia que podem acelerar o caminho para a sua recuperação. No entanto, é fundamental destacar que os psicadélicos não são uma panaceia ou uma cura milagrosa, e que as terapias psicadélicas não funcionarão para todos nem melhorarão as crises socioculturais urgentes que enfrentamos agora.
O naturalista John Muir observou: “Quando tentamos escolher qualquer coisa por si só, descobrimos que ela está ligada a tudo o mais no Universo”. Isso assemelha-se ao conceito budista de surgimento interdependente, a noção de que tudo o que existe depende e influencia tudo o resto. Essas visões holísticas advertem-nos contra o disparate de estudar apenas as partes e ignorar o todo. Da mesma forma, uma promessa fundamental das terapias psicadélicas é o seu potencial para introduzir uma visão mais holística dos cuidados de saúde, trazendo uma abordagem integrativa de corpo, mente e espírito de volta à medicina e à psicologia.
Para os cientistas, os psicadélicos fornecem uma ferramenta fascinante não apenas para entender melhor a mente e o cérebro, mas também para investigar questões filosóficas de longa data, como a natureza da criatividade, espiritualidade e, sem dúvida, da própria consciência humana. Para o público em geral, a esperança do autor é que o acesso mais amplo aos psicadélicos possa levar algumas pessoas a um senso renovado de significado e propósito, revigorar os esforços colaborativos para melhorar a sociedade e ajudar a mover-nos coletivamente em direção à possibilidade de um mundo reimaginado.
Artigo Original de Albert Garcia-Romeu, publicado na Psychology Today a 13/04/2023. Albert Garcia-Romeu, Ph.D., é professor assistente de psiquiatria e ciências comportamentais na Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins. Tem vindo a investigar os efeitos de psicadélicos em humanos, com foco na psilocibina no tratamento das perturbações de adição.
Tradução livre por Pedro Mota
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