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Regulamentar Psicadélicos como Ferramentas, Não como Tratamentos

Regulamentar Psicadélicos como Ferramentas, Não como Tratamentos

11 de julho de 2025 4 minutos de leitura

  • Catarina Cunha
  • Psicadélicos
  • Psiquiatria

O artigo de Wolff et al. (2025), "Reframing psychedelic regulation: Tools, not treatments", constitui uma contribuição oportuna e provocadora ao debate emergente sobre a regulamentação das terapias assistidas por psicadélicos. A proposta central dos autores é clara: a atual abordagem regulatória, centrada em modelos de avaliação farmacológica tradicionais, é inadequada para capturar a complexidade dos efeitos terapêuticos dos psicadélicos, que são indissociáveis da interação com intervenções psicoterapêuticas. Assim, propõem que estas substâncias sejam enquadradas não como tratamentos em si, mas como ferramentas que viabilizam ou amplificam o processo terapêutico.

A analogia com os anestésicos, proposta pelos autores, é particularmente elucidativa: tal como um anestésico permite a realização de uma cirurgia mas não trata a patologia por si só, os psicadélicos facilitam a intervenção psicoterapêutica, catalisando processos de mudança psicológica em contextos adequados. Este enquadramento tem implicações profundas para a forma como se concebem os ensaios clínicos, os processos de aprovação regulatória e os modelos de formação de profissionais.

Os autores apresentam uma crítica pertinente e bem fundamentada à tendência observada em certos desenvolvimentos farmacêuticos recentes de minimizar ou dissimular o papel central da psicoterapia. A proposta insere-se num contexto mais amplo de crescente marginalização da psicoterapia nos protocolos clínicos e nos enquadramentos regulatórios. Um exemplo ilustrativo é o estudo de Goodwin et al. (2022), que descreve o uso de psilocibina com "apoio psicológico", evitando o termo "psicoterapia", apesar de o protocolo implicar intervenções estruturadas conduzidas por profissionais especializados. A evidência empírica é consistente ao demonstrar que fatores como a aliança terapêutica, o setting e o suporte interpessoal têm um papel mediador significativo nos desfechos clínicos.

Os autores defendem que o modelo regulatório vigente - centrado na avaliação de desfechos clínicos de longo prazo, como a redução de sintomas depressivos ou ansiosos - é inadequado para avaliar o potencial terapêutico dos psicadélicos. Isso porque os seus efeitos não se limitam à ação farmacológica direta, mas emergem da interação entre o estado mental induzido e o processo psicoterapêutico que o acompanha.

Como alternativa, propõem que os psicadélicos sejam regulados pela sua capacidade de induzir estados mentais agudos e bem definidos, de forma análoga à regulação dos anestésicos: não pelo resultado final da intervenção, mas pela segurança e fiabilidade do estado que induzem.

Assim, os ensaios clínicos com psicadélicos poderiam adotar como endpoints regulatórios (isto é, critérios de avaliação para aprovação) efeitos agudos mensuráveis como:

  • Dissolução do ego – experiência subjetiva de perda de fronteiras entre o "eu" e o mundo (Nour et al., 2016);
  • Flexibilização de crenças – flexibilização temporária de crenças rígidas, permitindo novas perspetivas;
  • Qualidade noética – sensação de ter acedido a verdades profundas ou revelações existenciais;
  • Abertura emocional, empatia e tolerância ao desconforto, especialmente no caso dos entactógenos como o MDMA.

Tais estados, ainda que transitórios, são relevantes para o processo terapêutico por funcionarem como "janelas de oportunidade" para a mudança. E, sobretudo, podem ser avaliados de forma padronizada, sem depender da qualidade ou especificidade da psicoterapia em si — algo que os reguladores (como a FDA ou a EMA) não estão atualmente equipados para analisar.

Essa abordagem converge com posições previamente defendidas por autores como Eduardo Schenberg, que alertam para os riscos de uma "despsicologização" das terapias psicadélicas em nome da comodidade regulatória. A minimização da psicoterapia, ainda que estrategicamente vantajosa sob o ponto de vista comercial, representa uma interpretação reducionista da natureza epistemológica, relacional e contextual destas intervenções.

A proposta de Wolff et al. é, portanto, uma contribuição valiosa para o debate internacional sobre a regulamentação dos psicadélicos, ao articular um modelo que preserva a especificidade terapêutica destas substâncias sem comprometer a exigência científica. O desafio que se coloca às instituições de saúde e órgãos reguladores é o de desenvolver estruturas híbridas que permitam a co-regulação de fármacos e processos psicoterapêuticos, com envolvimento efetivo de profissionais de saúde mental na definição de boas práticas.

Num campo em rápida expansão, a forma como escolhemos regular não é meramente técnica: é também uma escolha ética, política e cultural. Reconhecer os psicadélicos como ferramentas e não como tratamentos isolados pode ser um passo decisivo para evitar os erros do passado na psiquiatria biológica e promover um paradigma mais integrativo, centrado na relação terapêutica e na transformação experiencial.



Catarina Cunha
Catarina Cunha
Médica Psiquiatra | SPACE (Direção)

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