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Bill Wilson, LSD e a História Psicadélica Secreta dos Alcoólicos Anónimos

Bill Wilson, LSD e a História Psicadélica Secreta dos Alcoólicos Anónimos

15 de março de 2022 10 minutos de leitura

  • Pedro Mota
  • Álcool
  • LSD

Don Lattin é um jornalista americano e autor de seis livros, incluindo The Harvard Psychedelic Club (HarperCollins 2010) e Changing Our Minds - Psychedelic Sacraments and the New Psychotherapy (Synergetic Press, 2017). Lattin lecionou na Graduate School of Journalism da Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde também se formou em Sociologia.

Utilizar uma substância que altera a mente para tratar uma adição a uma outra substância que altera a mente pode parecer contraintuitivo. Porém, como em todos os contextos onde são utilizadas substâncias psicadélicas, essa abordagem terapêutica tem tudo a ver com set e setting, intenção e integração, que tipo de substâncias são utilizadas, com que frequência e em que dose.

Aqueles que afirmam que a única maneira de alcançar uma sobriedade duradoura é através da abstinência total do álcool e de todas as outras drogas poderão ficar surpreendidos ao saber que Bill Wilson, cofundador dos Alcoólicos Anónimos (AA), acreditava firmemente na capacidade do LSD de tratar a adição pelo álcool, até nos casos mais desafiantes e complexos.

O entusiasmo de Bill Wilson pelo LSD como potencial ferramenta a integrar no célebre Programa dos 12 passos é expresso na sua correspondência com o famoso psicólogo suíço Carl Jung, em 1961.

Jung havia discutido como concordava com Wilson que algumas pessoas com dependência de álcool, particularmente obstinadas, deveriam ter um despertar espiritual para superar a sua adição, ressalvando que a palavra latina para álcool é spiritus. “Usam a mesma palavra tanto para a mais elevada experiência religiosa como para o veneno mais depravado”, escreveu Jung.

Essa carta de 30 de janeiro de 1961 — em resposta a uma longa carta que Wilson escreveu a Jung — é bastante famosa nos círculos dos AA. Porém, ao realizar pesquisas para o meu livro Distilled Spirits — Getting High, Then Sober, with a Famous Writer, a Forgotten Philosopher and a Hopeless Drunk, descobri uma segunda carta de Wilson endereçada a Jung. Naquela carta de 29 de março de 1961, Wilson escreve extensamente sobre as suas experiências utilizando LSD para ajudar membros de Alcoólicos Anónimos a ter o despertar espiritual que é central para o programa de recuperação de doze passos.

“Alguns dos meus amigos dos AA tomaram LSD com frequência e com muito benefício”, disse Wilson a Jung, acrescentando que a poderosa substância psicadélica provoca “uma grande ampliação, aprofundamento e aumento da consciência”.

Wilson disse a Jung que a sua primeira viagem de LSD, em 1956, o lembrou de uma revelação mística que teve depois de atingir o fundo do poço na década de 1930 que o conduziu até uma enfermaria de um hospital de Nova Iorque. “A minha experiência espiritual espontânea original de há vinte e cinco anos atrás foi encenada com maravilhoso esplendor e convicção”, escreveu.

O LSD ainda era legal em 1956, e no caso de Wilson, inicialmente tomava-o sob a supervisão médica do investigador da UCLA Sidney Cohen, e com a orientação espiritual de um seu amigo, Gerald Heard, um místico anglo-irlandês e um dos primeiros defensores da espiritualidade psicadélica. Wilson viria a formar, discretamente, um clube psicadélico com várias figuras ilustres daquela década, incluindo o escritor Aldous Huxley.

A sua experiência espiritual prévia ocorrera em dezembro de 1934, antes mesmo do LSD ser sintetizado. Ocorreu durante a quarta e última estadia de Wilson num hospital privado de Nova Iorque, no qual se administrava algo designado de Towns-Lambert Cure para tratar os pacientes com dependência do álcool. Muitos desses pacientes, incluindo Wilson, haviam sido homens de negócios bem-sucedidos, cujo consumo abusivo de álcool acabou por ficar fora do seu controlo durante a Grande Depressão.

“De repente”, Bill recordaria mais tarde, “o meu quarto ficou encandeado com uma luz branca indescritível. Fui tomado por um êxtase indescritível.”

A sala onde se encontrava ficava localizada num centro de reabilitação onde os médicos administravam uma poção que incluía duas substâncias derivadas de plantas conhecidas por causar delírios e alucinações. Uma delas é a beladona e a outra o meimendro, ambas por muito tempo associadas à feitiçaria e às poções que diziam invocar os espíritos dos mortos.

Portanto, há uma boa probabilidade de que as plantas com propriedades psicoativas tenham desempenhado um papel no que veio a ser conhecida como a visão fundadora dos Alcoólicos Anónimos, embora os efeitos das ervas usadas no Towns Hospital sejam diferentes de outras plantas psicadélicas e do LSD que Wilson começaria a experimentar duas décadas depois.

Era desta forma que Bill Wilson, mais tarde, descrevia a sua visão no Towns Hospital:

“No olho da mente, havia uma montanha. Fiquei no cume onde soprava um vento forte. Um vento, não de ar, mas de espírito. Com grande e pura força, soprou através de mim. Então veio um pensamento incandescente: És um homem livre!

Na minha opinião, não importa se a visão de Bill foi causada por plantas psicoativas, revelação divina ou pelas alucinações que os pacientes com dependência de álcool por vezes experienciam quando atingem ao fundo do poço e param, subitamente, de beber.

O que importa é que esta visão transformou a sua vida e inspirou a sua jornada para libertar outros indivíduos do mesmo vício.

Um dos fundamentos do programa de recuperação de doze passos que Wilson e companhia idealizaram na década de 1930 é a proposição de que alcoólicos e outros indivíduos com adições deverão passar por um “despertar espiritual” inspirando-os a “entregar a nossa vontade e as nossas vidas aos cuidados de Deus como nós O entendemos.”

Essas são as únicas palavras nos doze passos que foram escritas em itálico, indicando uma abertura nos primeiros círculos de AA para encontrar Deus na tradição judaico-cristã, na espiritualidade oriental ou até, vinte anos mais tarde, numa pastilha de ácido. Na verdade, muito antes de contactar com as substâncias psicadélicas, Wilson era um estudante de psicologia paranormal e de várias formas de espiritualismo, realizando sessões espíritas e outros encontros com alguns dos principais médiuns do seu tempo.

Na sua segunda carta a Jung, Bill Wilson referia que muitos membros dos AA “voltaram às igrejas, quase sempre com bons resultados. Mas alguns de nós seguiram caminhos menos ortodoxos.”

Wilson citou a investigação canadiana de Humphry Osmond, o homem que transformou Huxley através da mescalina em 1953. Osmond relatou que 150 indivíduos com perturbação do uso do álcool foram “pré-condicionados com LSD e depois colocados nos grupos dos AA da região”.

Durante um período de três anos, todos eles alcançaram “resultados surpreendentes” quando comparados a outros indivíduos frequentadores dos AA com a doença e que não haviam sido tratados com recurso a psicadélicos.

“Os meus colegas acreditam que o LSD desencadeia, temporariamente, uma mudança na química do organismo, a qual inibe ou reduz o ego, permitindo assim que novas realidades sejam vistas e sentidas”, disse Wilson a Jung.

Jung havia ficado gravemente doente na época em que terá recebido a segunda carta de Wilson. Nunca respondeu à mesma e talvez nem tenha tido a hipótese de a ler antes de morrer a 6 de junho de 1961.

Bill Wilson faleceu dez anos mais tarde, vítima de uma doença desencadeada pelo seu outro vício do qual nunca se conseguiu livrar – o tabaco.

No final, a ideia de Bill Wilson em introduzir o LSD nos círculos de Alcoólicos Anónimos não foi levada a cabo. Elementos mais cautelosos e conservadores dos AA recuaram, questionando o entusiasmo desenfreado do seu fundador por esta substância.

Noutra correspondência, Wilson havia afirmado que o poderoso composto psicoativo era “tão inofensivo quanto a aspirina”. Porém, noutra correspondência, reconhecia que o LSD não tem “nenhuma propriedade milagrosa de transformar pessoas espiritual e emocionalmente doentes em saudáveis ​​da noite para o dia”.

Enquanto isso, em meados da década de 1960, o notório evangelismo do LSD de ícones contraculturais como o professor de Harvard Timothy Leary e Ken Kesey começaram a virar a América contra a ideia das terapias psicadélicas.

Contudo, nas últimas décadas, psicólogos e neurocientistas ressuscitaram a investigação sobre as perturbações do uso de substâncias que se havia iniciado na década de 1950 e que foram suspensas durante a “Guerra às Drogas” nas décadas de 1970 e 1980. Ensaios clínicos mostraram, mais uma vez, a eficácia do uso de substâncias psicadélicas, juntamente com a psicoterapia, no tratamento das perturbações do uso de álcool, cocaína e tabaco.

Ao mesmo tempo, houve uma explosão de interesse no uso ritualizado da Ayahuasca, ibogaína e outras substâncias vegetais para ajudar as pessoas com perturbações do uso de substâncias.

No meu livro Changing Our Minds – Psychedelic Sacraments and the New Psychotherapy, entrevistei pessoas com adições, terapeutas, xamãs e cientistas que têm vindo a fazer trabalho e investigação nesta área.

Carroll Carlson, uma mulher com perturbação do uso do álcool tratada num ensaio clínico na Universidade do Novo México, disse que uma visão que teve de Jesus durante a terapia assistida com psilocibina permitiu que ele “me perdoasse pelas escolhas que fiz”.

Gordon McGlothlin, um tabagista de longa data que se aproximava da sua reforma, abandonou o seu hábito de fumar tabaco após um ensaio clínico com psicadélicos na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Questionado sobre como a sua viagem havia tido resultados positivos, referiu: "De repente, entendes como o teu corpo e o universo estão conectados... Eu posso querer fumar um cigarro, mas agora sei que não preciso disso".

Carson, um heroinómano que entrevistei num centro de tratamento no México, foi tratado com duas substâncias psicadélicas – ibogaína e 5-MeO-DMT. Carson, um cristão evangélico de 31 anos de Dallas, disse que se sentiu “renascido” após a experiência. “Desde a ibogaína que o desejo que eu tinha por opiáceos desapareceu pela primeira vez em dez anos”.

Se tudo isto parece bom demais para ser verdade, é porque talvez o seja. Outra pessoa com adição a heroína que entrevistei para o meu livro foi a essa mesma clínica e rapidamente teve uma recaída após a sua cura milagrosa. Logo percebeu que precisava de um grupo de apoio contínuo e de outras mudanças no seu estilo de vida se quisesse ficar livre de pensamentos e comportamentos que conduzem à adição.

Esse é exatamente o ponto por trás de uma rede emergente de pessoas com perturbações do uso de substâncias que reescreveram tenuemente os doze passos de Bill Wilson e realizam reuniões pelo Zoom sob a designação de Psychedelics in Recovery.

Também pela minha história pessoal enquanto alcoólatra e viciado em cocaína em recuperação, desempenhei um papel menor na formação desse grupo online. Fiquei sóbrio em 2006, e fiz isso sem psicadélicos e conto essa minha história em Distilled Spirits. Nos anos seguintes, como parte do projeto Changing our Minds e para satisfazer a minha curiosidade, revivi cautelosamente as minhas próprias experiências psicadélicas. Como participante/observador, explorei o uso terapêutico e espiritual de cogumelos contendo psilocibina, MDMA, ketamina, Ayahuasca e 5-Meo-DMT.

Até agora, jamais voltei a consumir álcool ou cocaína, muito menos caí no abuso de psicadélicos. Ainda bebo é muitos cafés expressos. Outros não tiveram tanta sorte.

“Definir a nossa própria sobriedade” pode funcionar para alguns, mas certamente não para todos. Valores como a honestidade, abertura e realmente nos conhecermos a nós mesmos, com a ajuda de uma comunidade de apoio, parece ser o melhor caminho para a recuperação – com ou sem ajuda psicadélica.

Artigo Original de Don Lattin, publicado na Lucid News a 20/10/2020.

Imagem: Jonn Leffmann e Dominic Milton Trott

Tradução livre por Pedro Mota



Pedro Mota
Pedro Mota
Médico de Psiquiatria | SPACE (Direção)

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