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O passado, presente e futuro do uso de um psicadélicos glutamatérgico para tratar a depressão

O passado, presente e futuro do uso de um psicadélicos glutamatérgico para tratar a depressão

29 de janeiro de 2023 10 minutos de leitura

  • Pedro Mota
  • Psiquiatria

Esta é a tradução de um artigo publicado na Smithsonian Megazine que retrata a atual realidade norte-americana e que diz respeito a 2 formas distintas de administração de um psicadélico glutamatérgico: o tratamento farmacológico com formas de administração intranasal (formalmente aprovada pela FDA) e a Terapia Farmacológica (endovenosa), ambas as quais diferem das Terapias Assistidas na sua forma elementar e Extensiva, devidamente integradas num processo psicoterapêutico.

A primeira vez que Ashley Clayton experimentou um psicadélico glutamatérgico para tratar a depressão, foi como se o tempo se dobrasse sobre si mesmo e não houvesse nada além do presente. As respostas iniciais variam: alguns pacientes entram num estado onírico-like, enquanto outros contam piadas inapropriadas ou se convencem de que estão mortos.

A experiência de Clayton foi branda em comparação, embora desorientadora, e ela ainda hoje procura as palavras para a explicar. Na manhã seguinte, porém, depois de a névoa de fadiga e náusea se ter dissipado, ela sentiu-se mais como ela própria como já não se sentina há anos.

Em 2016, Clayton estava a participar num ensaio clínico de Fase II para determinar a dose mais eficaz do psicadelico glutamatérgico para aliviar os sintomas de depressão. Ensaios como estes ajudam a determinar a eficácia e a dosagem de um medicamento, antes que os investigadores possam passar para uma fase final de ensaios e preparar um pedido para aprovação forma pela FDA. Clayton havia experimentado psicoterapia e um arsenal de antidepressivos orais ao longo dos anos, porém os seus sintomas depressivos graves e ideias de morte foram persistindo.

Assim que começaram a interferir no seu trabalho como investigadora associada na Universidade de Yale, ela sabia que precisava de uma nova abordagem. Yale é o lar de um respeitado programa de investigação científica com o psicadélico glutamatérgico, pelo que ela própria terá começado a considerar inscrever-se num ensaio clínico. Hoje, seis anos e inúmeras batalhas com seguradoras depois, recebeu quase 150 infusões. “É um tratamento que salva vidas para mim”, disse.

A depressão é a terceira principal causa de incapacidade em todo o mundo. Mesmo se tratada com sucesso, 80% dos pacientes terão uma recaída nos cinco anos seguintes ao período de remissão. Mais de 30% não responderão a pelo menos dois tratamentos antidepressivos e serão diagnosticados com depressão resistente ao tratamento. Este psicadélico, por sua vez, foi utilizado pela primeira vez na prática clínica na década de 1960 como uma alternativa mais segura ao anestésico fenciclidina (PCP), que foi descontinuado nos EUA devido à alta incidência de delirium pós-operatório com alucinações. Em 1970, a FDA aprovou-o como anestésico geral e hoje está na Lista Modelo de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial da Saúde. Porém, a investigação sobre os efeitos antidepressivos só foi expressiva nas últimas duas décadas.

Em 2000, uma equipe da Yale School of Medicine publicou o primeiro estudo randomizado controlado para demonstrar os efeitos antidepressivos do fármaco. Liderados por John Krystal, agora chefe do departamento de Psiquiatria da mesma faculdade, investigadores mostraram que uma única dose subanestésica conduziu a uma melhoria clínica da depressão – e, em alguns casos, levou a uma resolução quase completa dos sintomas - em menos de 24 horas.

Levaria vários anos e estudos de vários grupos de investigação até que o psicadélico glutamatérgico ganhasse força na comunidade médica como um antidepressivo eficaz. Em 2010, muitos médicos estavam tão convencidos por esta série de estudos preliminares que começaram a adotar este fármaco - talvez preventivamente - na sua prática clínica.

Desde então, o potencial antidepressivo deste psicadélico cativou investigadores, empresas farmacêuticas e pacientes. À medida que um conjunto de dados clínicos e do mundo real continua a crescer, o tratamento parece ser particular em diferentes sentidos. Embora os antidepressivos tradicionais levem semanas para fazer efeito clinicamente percetível, mesmo pacientes com graus mais severos de depressão podem começar a responder a este fármaco apenas algumas horas após a sua administração. No entanto, a U.S. Drug Enforcement Administration classifica a substância como uma droga de Classe III, o que significa que tem um potencial moderado a baixo de dependência física e psicológica (menos do que drogas de Classe II, como cocaína, mas mais do que drogas de Classe IV, como o alprazolam).

Além do potencial de abuso, pode causar outros efeitos laterais, incluindo um estado de consciência alterada de curta duração imediatamente após o tratamento. Isso é conhecido clinicamente como um episódio dissociativo e coloquialmente como “K-hole” se a dose for alta o suficiente.

Apesar da apreensão justificada, muitos anunciam a descoberta dos rápidos efeitos antidepressivos do psicadélico glutamatérgico como um dos desenvolvimentos no tratamento de doenças psiquiátricas mais significativos das últimas décadas – um que também nos está a dar novas informações sobre a própria neurobiologia da depressão. Atualmente, os investigadores estão a usar o conhecimento que adquiriram ao longo destas décadas para reduzir os efeitos menos desejáveis do fármaco e até mesmo dar novos linhas orientadoras para outros tratamentos não convencionais para a depressão, como a psilocibina.

Além de exercer seus efeitos muito mais rapidamente do que os antidepressivos convencionalmente usados na prática clínica psiquiátrica, este psicadélico também induz efeitos cerebrais de uma forma diferente desses antidepressivos monoaminérgicos, os quais aumentam – entre outras funções - os níveis dos de serotonina, dopamina e/ou noradrenalina para melhorar o humor. No entanto, parece afetar principalmente o glutamato, que ajuda a estimular uma maior interconexão cerebral.

Os investigadores têm uma boa noção de onde a substância se liga primeiro nos centros cerebrais superiores de forma a afetar o funcionamento cognitivo e emocional. No entanto, como acontece com muitos fármacos, os mecanismos específicos pelos quais ela exerce seus efeitos permanecem ainda não totalmente compreendidos. Os investigadores também acreditam que pode ser capaz de reverter danos nas conexões entre as células cerebrais causadas pelo stresse crónico. Tal pode ser um dos motivos para que os seus efeitos antidepressivos parecem durar mais em doses repetidas e sugere que pode ajudar a proteger contra a recaída dos sintomas depressivos.

Os médicos prescrevem o psicadélico off-label para pacientes com depressão há pelo menos duas décadas. Usar um medicamento aprovado para fins não aprovados é perfeitamente legal com o consentimento informado do paciente. Os médicos costumam tomar estas decisões quando um paciente em sofrimento esgotou todas as outras opções. No entanto, muitas seguradoras não cobrem o custo de tratamentos off-label, forçando os pacientes a escolher entre pagar grandes quantias ou abrir mão de um remédio que pode salvar vidas.

Em muitos casos, um medicamento amplamente prescrito para uma indicação off-label pode nunca ser aprovado pela FDA para o mesmo tratamento, especialmente se, como este, o medicamento for um genérico. As empresas farmacêuticas têm pouco incentivo financeiro para financiar testes que exploram novos caminhos para medicamentos genéricos porque não conseguem recuperar o seu investimento, tal como explica Husseini Manji, que liderou a equipe da Janssen – uma subsidiária da Johnson & Johnson.

Antes de se mudar para a indústria farmacêutica, Manji foi diretor do programa de perturbações de humor e ansiedade nos Institutos Nacionais de Saúde e foi coautor do primeiro estudo a replicar as descobertas de Krystal em 2006. Postulou que um spray nasal poderia ser a abordagem mais prática para fornecer este fármaco aos pacientes, porque não exigiria a presença de um anestesiologista. No entanto, um spray libertaria uma quantidade muito menor do fármaco.

Do início ao fim, Manji diz que todo o processo de aprovação da FDA totalizou cerca de 25 estudos diferentes, envolvendo milhares de participantes. Os efeitos adversos mais comuns tendem a ser dissociação, náusea, vertigem, alteração do paladar e tontura. Estes geralmente aparecem logo após a administração e desaparecem após cerca de uma hora e meia. Nos ensaios de Fase III, muitos pacientes com depressão resistente ao tratamento começaram a ver uma redução nos sintomas depressivos em apenas 24 horas. Manji diz que muitos indivíduos requerem menos tratamentos ao longo do tempo - por exemplo, a transição da administração duas vezes por semana para uma vez a cada várias semanas.

O sucesso do formato de administração nasal deste psicadélico estimulou outras empresas farmacêuticas a retornar ao desenvolvimento de antidepressivos e ao campo da neurociência de forma mais ampla após um hiato de décadas, diz Carlos Zarate Jr., chefe de terapêutica experimental e fisiopatologia do Instituto Nacional de Saúde Mental. Depois de o presidente Richard Nixon ter declarado uma “luta ao cancro” em 1971, muitas empresas farmacêuticas mudaram o seu foco e investimentos para oncologia e imunologia, que – ao contrário dos problemas de saúde mental – tinham alvos terapêuticos claros.

Enquanto alguns investigadores estão a estudar formas de prolongar os efeitos antidepressivos da substância usando tratamentos mais tradicionais como a psicoterapia, outros como Zarate estão a trabalhar para construir forma sem o potencial de abuso e os efeitos dissociativos iniciais. Zarate está a estudar vários metabólitos conhecidos como hidroxinorketaminas (HNKs), que podem oferecer efeitos antidepressivos rápidos e sustentados em modelos animais. Ainda este ano, ele e os seus colegas planeiam iniciar um ensaio clínico testando um metabólito chamado (2R,6R)-HNK em doentes com depressão resistente ao tratamento. Ele diz que as novas tecnologias em breve permitirão tratamentos que funcionem imediatamente sem efeitos laterais. “Ainda não chegamos lá, mas estamos nesse caminho.”

Muitas questões ainda permanecem, como a quais recetores o psicadelico glutamatérgico se liga no cérebro. Por exemplo, há evidências que sugerem que pode ativar o sistema opioide do cérebro, mas ainda não está claro se isso é a chave para os efeitos antidepressivos de ação rápida ou seu potencial de uso indevido. “Existem preocupações sobre o potencial de abuso que não devemos minimizar”, diz Zarate. Parte da solução, ele explica, é garantir que os procedimentos padronizados sejam implementados para evitar que este fármaco seja prescrito de forma muito “livre”.

Até hoje, Clayton continua a receber tratamentos a cada duas semanas. Participou em ensaios clínicos do formato de administração nasal deste psicadélico antes da aprovação do FDA, mas não respondeu bem a essa estratégia. Optou pela forma racêmica intravenosa desde então, mas a sua seguradora recusa-se a cobrir os custos. O fármaco em si é relativamente barato, mas o tempo e a supervisão necessários para administrar as infusões aumentam os custos diretos para algo entre US$ 600 e US$ 2.000 por tratamento. Como resultado, conta com a boa vontade dos médicos e enfermeiros do seu hospital para fornecer esta intervenção de forma gratuita.

Olhando para trás, a quantidade de pura sorte que salvou sua vida foi angustiante; teve acesso a recursos médicos e médicos atenciosos que muitos outros não têm. Como investigadora de saúde mental no Programa de Pesquisa em Violência Familiar de Yale, ela é formalmente treinada em defesa da saúde e está mais bem posicionada do que a maioria para navegar pelas complexidades do sistema de saúde. E, no entanto, refere que “era quase impossível para mim ter acesso a esse tratamento e quase morri durante o processo”.

Apesar dos muitos obstáculos que permanecem em relação ao acesso, protocolos de tratamento e efeitos colaterais, com a apreensão vem o otimismo. Pacientes e profissionais esperam que o psicadélico glutamatérgico inaugure uma nova era de novos tratamentos com medicamentos e revele uma imagem mais clara das bases neurológicas da depressão.

“São fármacos que têm efeitos profundos na consciência”, diz Krystal. “E assim estamos realmente a aprender sobre a neurobiologia e a psicofarmacologia dos aspetos superiores da consciência humana à medida que aprendemos sobre estas doenças e o seu tratamento. E isso também é realmente emocionante.”

Artigo Original de Raleigh McElvery publicado no Smithsonian Magazine a 24/05/2022.

Tradução livre por Pedro Mota



Pedro Mota
Pedro Mota
Médico Psiquiatra | SPACE (Direção)

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