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Riscos e considerações sobre a Microdosagem

Riscos e considerações sobre a Microdosagem

3 de novembro de 2022 5 minutos de leitura

  • Pedro Mota
  • Psicadélicos
  • Sociedade

A microdosagem psicadélica consiste em usar quantidades relativamente pequenas de substâncias psicadélicas serotoninérgicas, sendo que mais frequentemente são utilizadas preparações com cogumelos contendo psilocibina ou preparações contendo LSD. Este uso geralmente acontece 2 a 4 vezes por semana, podendo ser intervalados com 1 a 2 dias entre as tomas.

Assiste-se, por todo o mundo, a uma crescente popularidade desta prática que tem sido amplamente divulgada não só entre diferentes comunidades, mas também nas redes sociais e nos órgãos de comunicação social sobretudo porque tem vindo a ser relatados diferentes efeitos positivos pelos seus praticantes. Frequentemente, têm sido descritas melhorias no humor, aumento na concentração, na produtividade, mas há também quem descreva que esta prática ajudou no tratamento de várias perturbações psiquiátricas, como a depressão ou ansiedade. O Global Drug Survey de 2021 espelhou esta tendência crescente da sua prática ao revelar que cerca de 1/5 dos inquiridos que usaram psicadélicos no último ano, fizeram-no através da microdosagem.

Foi publicada na edição desta semana da Revista Sábado uma peça jornalística sobre as substâncias psicadélicas. Fui entrevistado juntamente com o Prof. Dr. Albino Maia, Prof. Pedro Teixeira e o Dr. João da Fonseca de forma a explorar o tema. Contudo, é importante reforçar algumas ideias que não ficaram suficientemente claras na peça final relativamente à microdosagem com psicadélicos.

  • Até à data não existe qualquer evidência científica robusta que apoie a utilização deste método de microdosagem com psicadélicos no tratamento de doenças psiquiátricas ou que se quer descreva que haja melhorias comprovadas e generalizáveis em parâmetros como a criatividade, produtividade ou a melhoria na atenção. Há, sim, relatos anedóticos que sustentam esses benefícios. Tal não significa, de forma alguma, que este método não possa eventualmente trazer benefícios a vários níveis; contudo, até ao momento, esses benefícios não foram comprovados cientificamente. Tal difere largamente daquilo que tem vindo a ser comprovado com outros métodos, como é o caso da Psicoterapia Assistida por Psicadélicos que tem reunindo um crescente corpo de evidência que sustenta a sua potencial indicação no tratamento de algumas doenças psiquiátricas graves e resistentes aos tratamentos convencionais.
  • O que tem vindo a ser publicado na literatura científica são sobretudo estudos que utilizam metodologias qualitativas à base de estudos observacionais e de inquéritos feitos a utilizadores deste método, bem como ensaios clínicos sem ocultação (Open-Label). Estes tipos de estudos trazem - invariavelmente - uma série de limitações e os seus resultados têm que ser interpretados com cautela. Há uma probabilidade grande de existir um enviesamento positivo destes resultados atendendo ao facto de muitas vezes a amostra ser pré-selecionada a partir de um grupo de participantes com interesse em participar nos estudos, outras vezes estas pessoas apresentarem-se com expetativas otimistas relativamente aos seus resultados, ou os indivíduos apresentarem certos traços de personalidade que também condicionam uma sobrevalorização dos efeitos do tratamento. Deste modo, estes estudos diferem dos ensaios clínicos randomizados e com dupla ocultação. Importa, contudo, mencionar que este tipo de estudos também têm sido realizados nos últimos anos, mas para já não mostraram qualquer evidencia de que a microdosagem com psicadélicos era mais eficaz que o placebo utilizado. Aliás, o estudo mais recente a este respeito foi publicado em agosto deste ano (Cavanna et al., 2022) e mostrou precisamente que quando os participantes não sabem se estão a receber uma microdose ou um placebo, não se verificam diferenças significativas entre os dois grupos.
  • Avaliar a eficácia da microdosagem é também um grande desafio precisamente porque não existe um consenso generalizado no que toca à quantidade de uma microdose atendendo que existe uma grande heterogeneidade relacionada com a própria definição: pretende-se que uma microdosagem não desencadeie efeitos subjetivos de uma forma percetível para o individuo, sendo que para umas pessoas uma dose de 0.5g de cogumelos contendo psilocibina pode desencadear efeitos percetíveis e para outras não desencadeie esse efeito.
  • A prática da microdosagem pode ser acompanhada por vários riscos, dependendo do contexto e da condição prévia de quem a utiliza. Por exemplo, sabe-se que algumas pessoas utilizam estas microdoses de psicadélicos como um método alternativo de tratamento para certas doenças psiquiátricas. Pode existir o risco de que uma pessoa com depressão ou uma perturbação de ansiedade venha abdicar de um tratamento medicamentoso ou de um tratamento psicoterapêutico porque foi contaminado com esta ideia aliciante de que estas microdoses podem ser uma panaceia e que podem resultar melhor do que os medicamentos convencionais. É fundamental que as pessoas não deixem de procurar ajuda especializada na área da Saúde Mental e discutir as suas dúvidas e os seus planos terapêuticos com os seus Psiquiatras e Psicólogos.
  • A microdosagem é uma prática underground, ilegal na maioria dos países, e que como tal não é minimamente controlada. As preparações utilizadas apresentam muitas vezes doses incertas de psicadélicos e podem também estar contaminadas com uma grande diversidade de outros componentes. Também é importa sempre mencionar que há pessoas que podem ter uma maior vulnerabilidade em desenvolver efeitos mais graves decorrentes do uso de substâncias psicoativas, incluindo episódios psicóticos, que muitas vezes requerem uma intervenção aguda.
  • Além disso, e pela “novidade” desta prática, ainda não sabemos ao certo que impacto é que a microdosagem feita de forma continuada pode ter a longo prazo, sobretudo no que toca à estimulação crónica dos recetores de serotonina no nosso cérebro.

Texto original do autor.



Pedro Mota
Pedro Mota
Médico de Psiquiatria | SPACE (Direção)

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