Os Psicadélicos estão a desafiar o gold-standard da Ciência
4 de junho de 2024 • 9 minutos de leitura
- Pedro Mota
- MDMA
- Psicadélicos
- Psiquiatria
Como se estudam fármacos que alteram a mente, quando todos os participantes dos ensaios clínicos sabem que estão a ter uma experiência psicadélica?
Hoje, um comité consultivo da Food and Drug Administration encontra-se reunido para discutir se os Estados Unidos devem aprovar o seu primeiro medicamento psicadélico. O destino do tratamento (Terapia Assistida por MDMA para Perturbação de Stress Pós-Traumático) dependerá de como a FDA interpreta dados de dois ensaios clínicos de fase 3 que, à primeira vista, são promissores.
Pacientes com sofrimento prolongado que tomaram o medicamento enquanto passavam por psicoterapia tiveram cerca de duas vezes mais probabilidade de recuperação sintomática da PSPT do que pacientes que receberam o placebo em conjunto com psicoterapia. Se o tratamento for aprovado neste Verão, tal pode representar uma nova ferramenta com o potencial de aliviar o sofrimento para alguns dos aproximadamente 13 milhões de americanos com PSPT. Poderá também vir a servir como um modelo para outros psicadélicos ultrapassarem as necessidades regulatórias da FDA. Mas há um enigma no cerne desses dois ensaios clínicos, um que tem vindo a pairar virtualmente sobre todos os esforços para estudar os fármacos psicadélicos.
Em ensaios clínicos, os participantes (e os investigadores que os estudam) geralmente não devem saber se estão a receber o medicamento em estudo ou um placebo, de forma a evitar que as expectativas das pessoas sobre um tratamento moldem a sua resposta ao mesmo. A ocultação é uma componente-chave de um ensaio clínico controlado randomizado, ou RCT — o gold-standard em Medicina para demonstrar que um medicamento realmente funciona. Mas praticamente ninguém pode tomar um medicamento psicadélico e não saber que o tomou. Alguns especialistas acreditam que a desocultação ameaça minar todo o campo de expectativas sobre o poder destes medicamentos. Mas outros argumentam que os próprios RCTs são, na verdade, os responsáveis. Para estes, os psicadélicos vêm expor fragilidades há muito ignoradas neste gold-standard científico, especialmente para testar medicamentos que atuam na mente humana.
Quando os ensaios clínicos randomizados são bem projetados, "não há substituto", segundo Boris Heifets, neurocientista da Universidade de Stanford. Num RCT, os participantes são aleatoriamente divididos em dois grupos, recebendo o tratamento ou um placebo. Os investigadores têm vindo a prezar este tipo de ensaios desde a década de 1960, sobretudo atendendo ao poder de descartar todas as razões não medicamentosas pelas quais as pessoas que recebem um novo medicamento podem melhorar. A principal dessas razões é o efeito placebo, no qual a crença do paciente num determinado tratamento, em vez de uma determinada questão relacionada com o medicamento ou o procedimento em si, leva à melhoria do paciente. Se os participantes do ensaio clínico se apresentam no início da intervenção com expectativas altíssimas (como os especialistas suspeitam que seja o caso em muitos ensaios com psicadélicos), saber que receberam um medicamento pode alimentar respostas positivas, e saber que o medicamento lhes foi negado pode fazê-los reagir negativamente. "Erramos muito ao confiar em resultados não-cegos", diz David Rind, diretor médico do Institute for Clinical and Economic Review, uma organização sem fins lucrativos que avalia novos tratamentos médicos.
Apesar de todas as vantagens dos RCTs, "acho que é óbvio que eles não são adequados para estudar psicadélicos", disse Heifets. Em ensaios clínicos de medicamentos estudados no tratamento de doenças oncológicas, os participantes não saberão a diferença entre uma infusão intravenosa de soro e uma infusão intravenosa de um medicamento; para testar novos procedimentos cirúrgicos, os grupos de controlo por vezes são seccionados e suturados sem o tratamento real. Mas psicadélicos como a psilocibina ou LSD promovem nas pessoas estados psicadélicos com verdadeiras alterações subjetivas e perceptivas. O MDMA, mesmo apesar dos efeitos a nível da percepção serem menos marcados, também desperta sentimentos expansivos de amor e empatia. "Os participantes saberão em meia hora se foram designados para a condição experimental ou placebo", tal como refere Michiel van Elk, psicólogo da Universidade de Leiden. Nos ensaios clínicos com MDMA, realizados pela empresa farmacêutica Lykos Therapeutics, quase todos os participantes adivinharam corretamente em qual grupo estavam alocados.
Muitos cientistas querem contornar esse problema projetando ocultações mais eficazes, sendo que inclusivamente alguns investigadores estão atualmente em processo de sintetização de compostos psicadélicos “sem efeito psicadélico”. Mas para outros investigadores, tentativas de integrar psicadélicos na estrutura dos RCTs ignoram a possibilidade de que os benefícios dos psicadélicos possam não ser redutíveis à ação bioquímica do fármaco em si. Desde a década de 1960, investigadores reconhecem que as crenças e expectativas que uma pessoa traz para uma sessão de tratamento podem influenciar se ela é terapêutica ou desestabilizadora, sendo esta a razão pela qual a maioria dos protocolos de terapia psicadélica inclui várias sessões de psicoterapia antes, durante e depois do tratamento. Na presença de um esforço reconhecido para dissociar os efeitos do medicamento do contexto em que ela é administrada — a um paciente por um terapeuta, ambos os quais esperam obter um resultado terapêutico — estes estudos cegos podem fracassar em capturar “a fotografia completa”.
Dessa perspetiva, altas índices de desocultação em ensaios clínicos com psicadélicos não significam necessariamente que os resultados sejam inválidos. "É também a forma como as pessoas se envolvem com esses efeitos e com o processo terapêutico que também contribui para os resultados positivos", tal como referido por Eduardo Schenberg, neurocientista do Instituto Phaneros, um centro de investigação sem fins lucrativos no Brasil. Investigações recentes comprovaram isso. Um pequeno estudo relatou que, entre pacientes com PSPT crónica que receberam terapia assistida por MDMA, a força do vínculo entre terapeuta e paciente — algo que o medicamento ajuda a trabalhar mediante os seus efeitos indutores de empatia — foi preditivo do sucesso do tratamento. “Dada a importância do contexto, mesmo os RCTs mais perfeitamente projetados podem falhar em capturar o quão úteis estes medicamentos são também fora do momento da administração”, disse Schenberg. Essa falha, se existir, pode ser inclusivamente estendida além dos psicadélicos, para vários outros tipos de medicamentos com efeitos psicoativos. Por exemplo, uma análise de 2022 descobriu que muitos ensaios com antidepressivos falharam em garantir a ocultação eficaz junto dos participantes de alguns estudos, em parte devido a ocorrência de efeitos laterais dos medicamentos. “Sabemos que até 80% da resposta ao tratamento com antidepressivos pode ser inclusivamente atribuída à resposta placebo”, de acordo com Amelia Scott, psicóloga clínica da Universidade Macquarie, co-autora do estudo. No entanto, na prática clínica, os antidepressivos são eficazes para muitas pessoas, sugerindo que os RCTs não estão também a captar de forma tão eficaz o que estes medicamentos podem oferecer aos pacientes, e que nos limitarmos a estudar tratamentos os quais apenas podem ser perfeitamente garantida a ocultação pode significar ignorar intervenções úteis em saúde mental. “Não devemos ter medo de questionar o gold-standard”, diz Schenberg. “Para diferentes tipos de doenças e tratamentos, podemos precisar de padrões ligeiramente diferentes.
Os RCTs provavelmente não perderão o seu lugar como gold-standard tão cedo, quer seja para avaliar a eficácia ou segurança dos psicadélicos, quer seja no estudo de qualquer outro tratamento. “Mas estes poderiam ser complementados com outros tipos de estudos que ampliariam a nossa compreensão de como os psicadélicos funcionam”, segundo diz Matt Butler, um neurocientista do King's College London. Investigadores já estão a desenvolver novos ensaios abertos, onde os participantes sabem qual o tratamento que estão a receber, procurando avaliar a contribuição das expectativas com os efeitos do tratamento. Estudos descritivos, que rastreiam como os tratamentos estão a ser aplicados em clínicas, podem também fornecer um retrato mais enriquecedor de quais contextos terapêuticos funcionam melhor. "Esses níveis de evidência não são tão bons quanto os RCTs", disse Butler, “mas sem dúvida que também nos podem ajudar a aprofundar a nossa compreensão de que forma estes tratamentos podem ser mais úteis”.
Nada disto significa que os dados dos RCTs da Lykos serão sou não suficientes para garantir a aprovação da FDA. Vários grupos, incluindo a Associação Psiquiátrica Americana, expressaram preocupação sobre os ensaios antes da reunião consultiva. Além da questão da desocultação, alegações de que os clínicos do estudo encorajaram os participantes a relatar resultados favoráveis e a ocultar eventos adversos levaram o Institute for Clinical and Economic Review a divulgar um relatório lançando dúvidas sobre os estudos. A CEO da Lykos, Amy Emerson, rebateu em uma declaração, dizendo: "Defendemos a qualidade e a integridade do nosso programa de investigação e desenvolvimento". Ainda assim, alguns investigadores continuam preocupados. "Se isso estabelece um precedente de que estes tipos de ensaios fornecem dados suficientes para a aprovação, o que significa isto para o futuro?" referiu Suresh Muthukumaraswamy, um neurofarmacologista da Universidade de Auckland.
O passado recente sugere que a ocultação pode não ser um fator decisivo para a decisão da FDA. Em 2019, a agência aprovou o spray nasal de esketamina — um entantiómero da ketamina — para o tratamento da depressão, apesar das preocupações sobre a desocultação nos ensaios clínicos do medicamento. Também a FDA trabalhou com a Lykos para projetar os ensaios de terapia com MDMA após designá-lo um tratamento inovador em 2017. Num e-mail, um porta-voz do FDA revelou que os RCTs cegos fornecem o nível mais rigoroso de evidência, mas "estudos não cegos ainda podem ser considerados adequados e bem controlados, desde que haja uma comparação válida com um controlo". Nesses casos, disse o porta-voz, os reguladores podem levar em consideração parâmetros como o tamanho do efeito do tratamento para decidir se o tratamento teve um desempenho significativamente melhor do que o placebo.
Mesmo que a FDA siga com a aprovação deste tratamento, a disponibilização de terapias com psicadélicos antes que os investigadores entendam completamente a interação entre expectativa, terapia e medicamentos pode significar “perder uma oportunidade de forçar as empresas a fornecer dados que avançariam significativamente o estudo desses medicamentos”, disse Muthukumaraswamy. Também se corre o risco de “minar” estes tratamentos a longo prazo. Se expectativas altíssimas estão, em última análise, a alimentar os resultados positivos que vemos nestes estudos, a FDA pode acabar por aprovar um tratamento que se torna menos eficaz à medida que a sua “novidade” desaparece. Isso é especialmente verdadeiro se estivermos a perder os principais componentes do que faz esses tratamentos eficazes ou o que coloca as pessoas em risco de enfrentar experiências menos positivas nestes contextos. Para responder melhor a estas perguntas — para psicadélicos e outros medicamentos psicoativos — podemos precisar de estudos que vão além do deste gold-standard.
Artigo original de Jonathan Lambert publicado no The Atlantic a 03/06/2024. Tradução livre por Pedro Mota
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