Os Terapeutas não estão preparados para falar com as pessoas sobre usar Psicadélicos
24 de maio de 2022 • 13 minutos de leitura
- Patrícia Marta
- Psicadélicos
- Sociedade
Chegou a revolução psicadélica – mas os psicoterapeutas ainda têm grandes lacunas no conhecimento sobre “fazer uma viagem com cogumelos mágicos” em nome da saúde mental.
Michael Kuntz estava em psicoterapia desde há alguns anos e sentia-se preso, como se não estivesse a progredir na sua ansiedade ou depressão. “Dei por mim num sítio onde não conseguia entender de onde é que tudo isto estava a vir, o que estava enterrado sob a superfície”, disse o homem de 41 anos.
Então, começou a ler sobre o uso de psicadélicos para problemas de saúde mental em ensaios clínicos em todo o mundo. Depois, em 2018, saiu o livro de Michael Pollan, “How to Change Your Mind: What the New Science of Psychedelics Teaches Us About Consciousness, Dying, Addiction, Depression, and Transcendence”. Entusiasmado, Kuntz foi pedir conselhos à sua terapeuta: O que é que ela achava de ele tentar psicadélicos?
“E ela disse-me «Olhe, eu própria estou a começar a ouvir muito sobre o assunto»”, afirmou Kuntz. “«Mas isso não é algo que conseguiria trabalhar consigo, devido às sensibilidades em torno de questões legais»”.
Kuntz sentiu-se ainda mais perdido. Ele sabia que o uso recreativo de psicadélicos era ilegal em Nova Iorque, onde ele morava, mas que havia sítios no mundo aos quais ele poderia ir onde isso não fosse ilegal. Ele não queria que a sua terapeuta lhe desse drogas, apenas que respondesse às suas questões.
À medida que mais pessoas descobrirem a investigação sobre psicadélicos na depressão, ansiedade e adição, elas vão ver-se na mesma posição de Kuntz: a pedir conselhos aos seus terapeutas e médicos. Mas como os psicadélicos têm sido ilegais desde há décadas, as pessoas podem encontrar terapeutas que possuem lacunas no conhecimento ou um estigma residual sobre experimentar cogumelos em nome da saúde mental.
Entretanto, a aprovação do MDMA por parte da FDA para o tratamento da perturbação de stress pós-traumático (PTSD) poderá estar para breve. Em 2018, a psilocibina recebeu a designação de “Breakthrough Therapy” pela FDA e os ensaios clínicos para a psilocibina no tratamento da depressão irão entrar na fase 3 já este ano. À medida que estamos no precipício dos tratamentos psicadélicos, há agora um reconhecimento crescente de que a parte do terapeuta tem sido negligenciada. Não há muito clínicos que sejam capazes de guiar as pessoas – não só durante uma experiência psicadélica, mas também antes e depois.
“Haverá uma grande necessidade de terapeutas competentes treinados nesta especialidade clínica”, segundo uma revisão de 2017 sobre terapeutas psicadélicos.
Após alguma pesquisa na internet, Kuntz encontrou o seu caminho para Ingmar Gorman, terapeuta de integração psicadélica. Gorman não administra psicadélicos, não diz aos doentes onde obter drogas, nem guia as pessoas durante experiências psicadélicas. Ele é um tipo de terapeuta novo e emergente, especialista em responder a questões sobre substâncias psicadélicas, saber como é uma experiência psicadélica e como ajudar as pessoas a entenderem o seu sentido, bem como estar atualizado na investigação em curso.
Gorman é uma “espécie rara”, e ele sabe disso. Por este motivo, ele e a sua colega Elizabeth Nielson, investigadora psicadélica e psicoterapeuta na Universidade de Nova Iorque, formaram uma empresa chamada Fluence, que oferece formação em terapia de integração psicadélica. Até agora, mais de 500 terapeutas foram às suas sessões de formação.
“Há uma grande procura por isto”, referiu Gorman, “e não há educação suficiente para a atender”.
Integração é um termo vago, que se refere à atribuição de significado e incorporação da experiência psicadélica na vida de uma pessoa. Embora seja reconhecida como importante, não tem havido muita investigação sobre ela. Num estudo de 2017 sobre ketamina para a depressão, os doentes foram distribuídos aleatoriamente para fazerem terapia após as infusões ou não fazerem terapia. As pessoas que fizeram terapia sentiram um alívio da sua depressão durante mais tempo.
A terapia de integração e grupos de apoio costumavam ser sítios onde as pessoas processavam experiências difíceis. Mas a realidade é mais complexa agora. Na sua versão de 2020 sobre terapia de integração, Gorman disse que os doentes o procuram por uma ampla variedade de motivos – apenas alguns por terem uma “bad trip”.
“Não se pensa em integração psicadélica quando se pensa nesta história, mas o que fazemos na nossa formação é educar e informar para que as pessoas não tenham a espécie de estigma ou resposta de medo em relação a trabalhar com clientes que tenham tido algum tipo de relação com psicadélicos”, explicou Gorman.
Outra mãe procurou-o após a sua filha ter consumido ayahuasca, numa decisão impulsiva, durante umas férias com os amigos. Enquanto estava sob o efeito da droga, ela teve uma visão de ser abusada sexualmente pelo seu pai. Aproximou-se do xamã e perguntou “Isto é o que eu vi, é real?”. O xamã respondeu-lhe que tudo o que a ayahuasca mostra é verdade.
Então ela recorreu à terapia de integração para um processamento mais subtil do que tinha visto – o que contradizia o que ela realmente sentia em relação ao seu pai. Como médicos, Gorman disse que não tratam os psicadélicos como sendo “sagrados” ou porteiros da verdade. Ele nunca diria a alguém o que era “real” ou não – o seu trabalho era trabalhar sobre como a experiência estava a afetar psicologicamente a sua cliente.
Estes cenários, em conjunto com outros exemplos de experiências complexas de doentes, são uma parte do que Gorman e Nielson apresentam aos seus formandos, num programa que tem evoluído e sido atualizado nos últimos seis anos. Os seus workshops principais, Psicadélicos 101 e 102, também fornecem uma introdução básica às substâncias psicadélicas, a sua história, investigação atual com MDMA e psilocibina, ensaios clínicos e estatuto legal.
Uma “bad trip” é algo com que o terapeuta aprende a lidar. Mas e se for uma experiência confusa? Ou uma não-experiência? Gorman descreveu que ensinam aos terapeutas como lidar com a desilusão de um doente. “Para muitas pessoas, mesmo quando é a sua primeira experiência, esta não é uma solução rápida. Por vezes não funciona assim e as pessoas podem realmente sentir-se como se estivessem quebradas. Que há alguma coisa errada comigo, porque funciona para todas as outras pessoas, mas não funcionou para mim. E então temos todo um processo em torno de ajudar a pessoa a digerir essa decepção”.
Os terapeutas aprendem como abordar crenças e expectativas preconcebidas que um doente possa ter em relação às substâncias, bem como vieses que um clínico possa ter. “Se os terapeutas se tornarem excessivamente entusiastas de que os psicadélicos são puramente úteis, eles podem alienar os seus doentes que estiverem a ter experiências difíceis”, relatou Gorman.
Quando iniciaram a sua formação, Gorman pensava que iriam ver pessoas que já sabiam muito sobre psicadélicos, com muita experiência na área. “Isso acabou por não ser verdade”, concluiu. “Diria que, na realidade, o contrário é verdade. A maioria dos clientes que vejo não são pessoas que vêm da cultura psicadélica”.
São esses que Ingmar quer ensinar. O seu objetivo com a Fluence é alcançar os clínicos que nunca tiveram uma experiência psicadélica. “É aí que importa, sabe?”, refletiu. “É aí que estamos realmente a causar impacto em termos de educar as pessoas, porque as pessoas sabem muito pouco se nunca tiverem experimentado um psicadélico”.
Gorman relata que ele e Nielson concordam que um clínico não precisa de ter tido a sua própria experiência psicadélica para ajudar alguém na integração. “O que eu acho que é mesmo curativo para as pessoas é a sua relação terapêutica, sentirem que podem ser ouvidos e compreendidos”.
Paul Ratliff, terapeuta familiar e de casal com 55 anos que participou num workshop, não tinha uma experiência com substâncias psicadélicas desde os seus 20 e tal anos. Ele disse que o seu interesse começou a ser despertado novamente quando começou a ler sobre o tema nos principais meios de comunicação. “Depois, acho que para mim, tal como para muitas outras pessoas, a publicação do livro de Michael Pollan foi um evento crucial”, partilhou Ratliff. “Foi esta indicação de que: Oh, isto está a tornar-se mainstream. Senti a porta a abrir-se. Parte da minha decisão de formalizar a minha exposição à área é a sensação de que isto é a crista de uma onda”.
Marc Sholes, psicanalista em Nova Iorque há 30 anos, afirmou que a terapia de integração psicadélica, no seu núcleo, não é assim tão diferente da psicoterapia tradicional. Mas os tipos de experiências que podem surgir nos doentes são algo específicos, de difícil acesso e difíceis de praticar noutro lado. “Não é fácil receber treino. Não está propriamente disponível”, mencionou Sholes.
Ratliff referiu que este estigma pode impedir uma pessoa de ser honesta com os seus terapeutas. “Você quer estar com alguém que vai abraçar este tipo de experimentação que você está a fazer”, explicou Ratliff. “Mesmo uma pequena preocupação sobre ser julgado pelo seu terapeuta pode afetar a relação terapêutica”. Ele também apresentou estratégias de como interagir com o desejo de um doente de consumir uma droga ilegal – no sentido de redução de riscos.
“Penso que, neste momento, estar envolvido neste trabalho é muito arriscado para toda a gente”, considerou a psicóloga Signe Simon. “Doente e profissional”.
Apesar de não ter qualquer estigma pessoal em relação aos psicadélicos, Simon queria ouvir sobre quais eram os riscos e quais eram os seus deveres e responsabilidade como clínica para manter os seus doentes seguros.
“Está numa zona tão cinzenta agora que acho que, para mim, muito disso foi por medo”, admitiu a psicóloga Simone Humphrey. “Isto é algo com que quero muito trabalhar, mas também quero saber se tenho a formação necessária para lidar com algo que possa ser imprevisível e possa colocar o doente em risco ou eu própria como clínica. O que é que estou legalmente autorizada a divulgar ou não divulgar? Há algum problema em recomendar? E todas as especificidades sobre como lidar com isso”.
Psicadélicos 101 e 102 é apenas uma estrutura para a terapia de integração psicadélica. Gorman e Nielson estão a trabalhar no sentido de a codificarem o máximo que podem, produzirem um manual e criarem acreditações mais formais.
Mas, em última análise, não há nada que impeça qualquer clínico de dizer que pode ajudar na integração psicadélica, independentemente de ter experiência ou preconceitos sobre as próprias substâncias.
Num artigo na Social Science Research Network, uma assistente social e estagiária em terapia com psicadélicos, Rose Jade, argumentou que a integração é um termo vago, sujeito a “sequestro”. “Pode significar assistência semelhante à fornecida num estudo da FDA…ou pode significar apenas terapia falada pós-dose…ou às vezes uma mistura dos anteriores…ou algo completamente diferente”, escreveu Jade. “É um termo muito vago que agora está a ser livremente utilizado em conversas e usado … em publicidade por profissionais de saúde licenciados para atrair clientes e gerar lucro ao profissional”.
Tal como os tratamentos com psicadélicos, fora de um contexto de ensaio clínico rigoroso, não existe ninguém a monitorizar ou policiar o que a integração implicaria exatamente.
E à medida que amadurece, tal como com outros aspetos da medicina psicadélica, o acesso e custo são um problema. Múltiplas sessões com profissionais treinados é dispendioso e, se a psicoterapia regular raramente é coberta pelos seguros, a terapia de integração psicadélica provavelmente cairá no mesmo saco.
Isto levanta uma questão complicada que atualmente assola a medicina psicadélica: os guias e os especialistas em integração precisam de ser psicoterapeutas? Ratliff reitera que os terapeutas “têm literalmente um código de ética” e, por isso, ele sente que as pessoas com experiência clínica estão mais bem posicionadas para ajudar. Um clínico poderá estar mais bem equipado para lidar com doentes ansiosos e deprimidos que estão curiosos acerca dos psicadélicos.
A FDA não regula a psicoterapia, mas os dispositivos médicos podem exigir um programa de treino, como a estimulação magnética transcraniana. Deverá alguém que quer tratar pessoas com, antes ou depois de psicadélicos ser deparado com a mesma barreira?
“Acho que quando pensamos sobre este processo e pensamos sobre padrões e pensamos sobre segurança, é aí que o meu impulso é dizer que deveria haver algum treino, deveria haver algum tipo de método formalizado, porque, caso contrário, qualquer pessoa pode autointitular-se de terapeuta de integração e potencialmente causar dano”, justificou Humphrey.
A necessidade de terapia de integração não vai desaparecer. Quando Frank (nome fictício para proteger a privacidade), um homem de meia-idade que vive em Nova Iorque, ficou interessado em tomar psicadélicos, foi para ajudar com a sua ansiedade social. O Frank não tomava qualquer droga desde há 30 anos, incluindo álcool – está sóbrio depois de ter problemas de adição quando era mais novo.
Ele queria recorrer a um terapeuta versado em psicadélicos antes de experimentar alguma coisa, para o ajudar a criar uma rede de segurança em torno da sua decisão – para si próprio e para os que lhe são próximos. “O meu namorado estava muito preocupado com isto e eu pude dizer-lhe, «Hey, estou a seguir todas estas etapas para ter a certeza de que estou a fazê-lo de uma maneira boa e cautelosa»”, relatou Frank.
O seu psicoterapeuta prévio não conseguia responder a todas as suas questões. “Não se pode simplesmente ir a um terapeuta aleatório e perguntar, porque eles não vão saber as respostas”, disse Frank.
Sherry Sacks, 46 anos, teve uma depressão grave durante cerca de oito anos. Ela fez psicoterapia, esteve medicada com antidepressivos, tentou estimulação magnética transcraniana. “Chegou a um ponto em que nenhuma destas coisas estava a funcionar e eu caí num desespero muito profundo”.
Durante um período de dois anos, Sacks fez 11 infusões com um psicadelico glutamatérgico, a mais recente em Junho passado. Ela começou a ter consultas com o Gorman após os seus primeiros dois tratamentos, não por ter tido uma “bad trip”, mas porque queria um local para explorar o significado das experiências.
“Qualquer outra pessoa, como o seu psicoterapeuta regular, vai dizer algo do género, «Isso foi uma boa viagem. Estavas sob o efeito de drogas. Claro que achaste isso interessante»”, atentou Sacks.
Com uma integração e preparação adequadas, a experiência de uma pessoa com psicadélicos pode ser melhorada. Gorman sente que a importância da integração pode não estar necessariamente no radar de todos – especialmente considerando o quão difícil é encontrar um terapeuta de integração além de pesquisar online e perguntar aos terapeutas sobre a sua experiência e credenciais. “Eu diria que, entre os leigos atualmente, há muito mais foco na experiência em si, e não tanta consciência sobre o que acontece depois”.
Kuntz acabou por ir ao Synthesis, um retiro legal de psilocibina perto de Amsterdão. Ele tinha feito trabalho de integração durante cerca de 3 meses antes de ir, através de terapia, journaling e leitura. Quando se sentou com os outros no retiro, sentiu-se muito mais preparado do que todos os outros.
“Eu estava pronto para o que quer que me aparecesse à frente”, descreveu Kuntz. “Foi quase como se as coisas que eu tinha esboçado no meu diário, uma por uma, começassem a surgir para mim. Algumas dessas coisas foram terrivelmente dolorosas. Não quero pintar um cenário de que me sentei, a sorrir em êxtase, durante cinco horas. Mas a capacidade de eu ser capaz de abordar algumas destas coisas, desapegar-me delas, examiná-las de um ângulo diferente e realmente senti-las – e depois deixá-las passar por mim e passar para um lugar de aceitação…simplesmente superou as minhas expectativas".
Artigo Original de Shayla Love, publicado na VICE a 02/03/2020.
Tradução livre por Patrícia Marta
Patrícia Marta
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