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Psicadélicos no tratamento de perturbações psiquiátricas: evidência atual e desafios futuros

Psicadélicos no tratamento de perturbações psiquiátricas: evidência atual e desafios futuros

21 de janeiro de 2025 8 minutos de leitura

  • Gonçalo Soares
  • Psicadélicos

Dentro da comunidade científica, muita tinta tem corrido nos milhares de artigos publicados sobre as chamadas substâncias psicadélicas. Entre Janeiro de 2010 e Janeiro de 2025 (hoje), é possível encontrar mais de 7000 artigos publicados na plataforma PubMed com menção à palavra-chave ‘Psicadélicos’. Nos congressos e encontros de Psiquiatria e Saúde Mental, nacionais ou internacionais, multiplicam-se os debates e as palestras que se debruçam sobre a aplicabilidade clínica destas substâncias. Neste efervescente status quo, em que o ritmo de produção de literatura científica sobre este tópico é bastante elevado, importa fazer uma atualização sobre aquele que é o conhecimento com mais evidência no presente. É nesse sentido que a SPACE partilha com a sua comunidade o resumo deste artigo de revisão.

Publicado no dia 1 de Janeiro de 2025 no American Journal of Psychiatry e fruto de uma colaboração internacional na qual participou o médico psiquiatra e investigador português Albino Maia, este artigo constitui uma análise dos estudos existentes com o objetivo de identificar aspetos metodológicos que impactem na interpretação daquela que é a evidência acerca da utilização clínica de psicadélicos em perturbações mentais. Com base nesta revisão, o grupo assumiu também o objetivo de contribuir com orientações para a investigação futura, com vista a um desenvolvimento dos tratamentos com psicadélicos que permita uma implementação segura na prática clínica.

Em jeito de mote, o artigo começa por elencar a evidência atual com maior robustez, maioritariamente produzida em ensaios clínicos controlados de curto-prazo, acerca das potenciais aplicações clínicas destas substâncias: apoio psicológico combinado com psilocibina na (1) Perturbação Depressiva Major (PDM); (2) Perturbação Depressiva Resistente (PDR) e; (3) Perturbação de Uso de Álcool (PUA). É ainda mencionada a evidência preliminar, oriunda de estudos controlados, que parece favorecer a aplicação de apoio psicológico em combinação com LSD na PUA e nos quadros de ansiedade e depressão relacionados com o fim de vida, bem como psilocibina associada a psicoterapia nos episódios depressivos associados à Perturbação Bipolar tipo II .

Apesar de, à data da elaboração do artigo, existirem vários ensaios a decorrer que incluem pacientes com outras perturbações (como as perturbações de ansiedade, perturbações do espetro obsessivo-compulsivo, uso de substâncias, perturbações de personalidade, entre outras), ainda existe uma carência transversal de estudos que caracterizem os efeitos a longo-prazo dos psicadélicos nas diferentes perturbações mentais. Os autores apontam ainda falhas na caracterização dos perfis de segurança e de potencial de abuso destas substâncias, rematando com as dificuldades relacionadas com os procedimentos de ocultação – método de investigação que impede tanto o investigador como o participante de saber se foi administrada a substância em estudo ou a substância placebo, algo que tem vindo a ser alvo de debate no campo de investigação com psicadélicos pela compreensível dificuldade em impedir este discernimento. Segundo os autores, “The profound and non-ordinary effects of psychedelics on consciousness, cognitive processing, and sensory perception are highly apparent to the participant and health care provider.”, sic. Não obstante, um estudo publicado recentemente avaliou a eficácia da cetamina na PDR sem sintomas psicóticos em comparação com outro tratamento sujeito à mesma dificuldade metodológica da ocultação (a Eletroconvulsivoterapia), concluindo-se a não inferioridade da cetamina.

À semelhança do que se verifica na investigação convencional com fármacos em Psiquiatria, existe uma seleção das pessoas que participam nos estudos, sendo excluído da maior parte dos ensaios com psicadélicos quem, por exemplo, apresente história pessoal ou familiar de psicose ou um risco elevado de suicídio. Este ponto é relevante quando se discute a aplicabilidade generalizada de qualquer tratamento, com os autores a avançar que 80% das pessoas com Perturbação Depressiva Major não são elegíveis para os ensaios que avaliam antidepressivos, algo que, ainda assim, não impediu a utilização massificada destes fármacos na prática clínica de médicos em todo o mundo.

O debate acerca da conceptualização da ‘viagem’/trip induzida pelos psicadélicos como fundamental para o sucesso do tratamento ou, em oposição, como um efeito indesejado do tratamento, não escapou aos autores. Os testemunhos pessoais alicerçam parte da evidência científica que relaciona positivamente algumas das componentes da experiência subjetiva da ‘viagem’ com os resultados do tratamento. Contudo, são também mencionadas publicações científicas que caracterizam experiências que não parecem ter sido cruciais para o sucesso do tratamento, podendo inclusivamente constituir um fator de dificuldade acrescida para algumas pessoas. Assim, neste artigo conclui-se que os dados atuais, provenientes de ensaios controlados, não confirmam nem refutam a hipótese de que a viagem psicadélica é uma condição sine qua non para se obter um efeito terapêutico com substâncias psicadélicas.

O recurso a intervenções psicológicas concomitantes à administração da substância foi também alvo de análise por este grupo. Tem vindo a ser replicada a evidência de que a intervenção psicológica, em alguma das suas variadas formas (apoio, psicoeducação ou psicoterapia), aumenta a eficácia do tratamento farmacológico na PDM. Contudo, ao falar de psicadélicos, e apesar da existência de alguns estudos que apoiam este tipo de abordagem multidisciplinar, ainda não é possível afirmar o caráter essencial de algum tipo de intervenção psicológica para o sucesso do tratamento, sendo igualmente desconhecido qual o tipo de intervenção mais adequado. A relevância desta questão não é exclusivamente do domínio clínico, uma vez que poderá impactar na real implementação deste tipo de tratamento, conforme as disponibilidades de recursos humanos/administrativos de cada instituição, podendo chegar a ser um fator limitante do acesso a psicadélicos.

Sobre a importância do set and setting, o grupo refere que não existem dados suficientes que sustentem a ideia de que algum tipo de cenário é o mais adequado para o tratamento, pelo que, até que existam provas que favoreçam algum tipo de setting específico, a administração de psicadélicos deverá ser feita num ambiente seguro e de apoio, sendo os investigadores encorajados a registar estes aspetos metodológicos. É recomendado que o tratamento seja administrado na presença de dois profissionais de saúde, devendo pelo menos um ter formação psicoterapêutica (por exemplo, psiquiatra, médico de família, enfermeiro de saúde mental ou psicólogo clínico), preferencialmente com formação adicional específica para psicoterapia assistida por psicadélicos, tendo em conta os aspetos idiossincráticos deste tipo de tratamento. No caso de nenhum dos dois profissionais presentes ser médico, o fácil e rápido acesso a cuidados médicos deve ser assegurado.

Sobre o potencial de abuso destas substâncias, a evidência suporta a ideia de que os psicadélicos têm baixo risco de abuso (com a exceção do psicadélico atípico cetamina). Contudo, os autores apontam que o potencial de abuso dos psicadélicos não foi especificamente avaliado em populações com prevalência de perturbações psiquiátricas.

Sobre a microdosagem, apesar da sua crescente popularidade nas redes sociais, impulsionada por vários relatos pessoais e estudos observacionais acerca dos benefícios na criatividade, na resolução de problemas, na flexibilidade cognitiva, na redução de ansiedade, nos níveis de bem-estar e na interação social, o grupo chama a atenção para o facto de que, normalmente, estas amostras não incluem pessoas com um diagnóstico psiquiátrico confirmado através de uma entrevista clínica estruturada. É também relevante o fator da expectativa, uma vez que, nos ensaios com ocultação, os resultados são bastante mais robustos nas pessoas que pensam ter recebido a substância, obtendo-se resultados equiparáveis ao placebo na maior parte dos casos. Ainda assim, parece haver um ‘caminho possível’ para a microdosagem, sobretudo no caso do LSD – em amostras pequenas, apresentou resultados promissores, especificamente no aumento da atividade cerebral relacionada com a recompensa. Segundo os autores, o potencial de implementação num ambiente menos restritivo, em maior escala e com mais eficiência (com menores custos) são aspetos atrativos da microdosagem, caso se venha a demonstrar que é segura e eficaz.

Por último, o artigo elenca algumas das questões mais relevantes acerca da segurança destes tratamentos. Ainda que sejam normalmente bem tolerados e que tenham janelas terapêuticas largas que permitem uma administração segura, os autores apontam a existência de uma carência ao nível da caracterização da segurança a curto e longo-prazo destas substâncias na população com perturbações psiquiátricas. Importa também descrever o potencial teratogénico e de interações com outros agentes farmacológicos, questões que precisarão de avaliações mais extensas para poderem ser respondidas com um elevado grau de confiança. A nível dos efeitos adversos mais comuns, o artigo menciona alguns sintomas físicos (como cefaleia e taquicardia) e psicológicos (o estado agudo de maior vulnerabilidade que as substâncias induzem, bem como a Perturbação Persistente da Perceção Induzida por Alucinogénicos). Apesar da evidência disponível sugerir a sua segurança neste domínio, os autores incentivam a investigação dirigida à cabal exclusão de potenciais efeitos adversos a nível cardíaco.

O grupo conclui o artigo com a afirmação de que os aspetos que foram analisados não negam a validade dos resultados dos milhares de estudos realizados até hoje, mas que fornecem um mote para as investigações futuras, enaltecendo aspetos que precisam de ser priorizados. Os autores arriscam que, sendo dada a devida atenção a estes pontos, aumentará a probabilidade de se verificar a eficácia e a segurança dos tratamentos com psicadélicos, salvaguardando assim a confiança do público nestes tratamentos e facilitando que sejam adequadamente regulamentados com vista à sua disponibilidade, acessibilidade e rentabilidade.



Gonçalo Soares
Gonçalo Soares
Médico (Psiquiatria) e Membro Satélite da SPACE

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