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Será que as Terapias Psicadélicas atuais utilizam Modelos Defeituosos da Mente? – É tempo para a Terapia Relacional

Será que as Terapias Psicadélicas atuais utilizam Modelos Defeituosos da Mente? – É tempo para a Terapia Relacional

2 de janeiro de 2023 13 minutos de leitura

  • Patrícia Marta
  • Psicadélicos
  • Psiquiatria

O renascimento da psicoterapia assistida por psicadélicos (PAP) tem vindo a merecer muita atenção ultimamente. Não só na medicina e investigação, mas também nos meios de comunicação social e na consciência pública em geral. Muitos anunciam este renascimento após décadas de embargo legal, mas alguns manifestaram um grande ceticismo e cautela. Terá chegado a hora de passar a uma abordagem de terapia relacional?

Uma preocupação chave em torno da atual PAP é que a área está a ser dominada por instituições médicas e de investigação (ex: Imperial College London, John Hopkins University). Por um lado, isto é de esperar e ser aceite na medida em que é necessário um trabalho empírico organizado e bem financiado. Por outro lado, cria uma abordagem organizada em torno dos compromissos e ideologias comuns do estabelecimento médico-científico.

O resultado é que quase toda a investigação atual e discurso em torno da PAP é moldada em termos de uma teoria individualista e centrada na cognição. Vamos chamar-lhe de “enquadramento ICC”.

Isto não é apenas um problema por ser tendencioso em relação a uma forma particular de ver a PAP. Muito mais importante, é um problema porque tal visão é baseada em fundamentos fracos, desatualizados e problemáticos, segundo a opinião do psicoterapeuta e escritor inglês James Barnes, como vamos explorar em seguida.

1. O Modelo Atual da Mente: A Dominância do Enquadramento ICC

O grosso da investigação sobre PAP baseia-se nos pressupostos e linguagem da psicologia cognitiva e neurociência. Deste ponto de vista, os fenómenos mentais são melhor explicados em termos de processamento cognitivo interno e dos sistemas neurológicos correlacionados com esse processamento.

Depois, a literatura está quase exclusivamente focada nos fenómenos cognitivos. E em como as crenças, perceções e padrões de pensamento, etc. – podem ter-se tornado problemáticos e como os psicadélicos podem mudar essas coisas. Um dos líderes da área, Carhart-Harris, sugere que a PAP está principalmente preocupada com a “desvalorização de uma variedade de esquemas cognitivos/percetivos maladaptativos ou ‘conjuntos’ sobre si próprio, os outros e o mundo” (Carhart-Harris & Brouer, 2021).

Os níveis sociais e interpessoais de experiência e funcionamento são largamente ignorados e o nosso envolvimento corporizado-afetivo no mundo e com os outros é negligenciado pelo modelo.

Em consonância com isto, encontramos metáforas cliché de mente-como-computador a serem utilizadas amplamente, nomeadamente ‘reiniciar’ ou ‘reinicializar’ o pensamento ‘defeituoso’ ou ‘distorcido’. Não é de todo incidental que os computadores sejam desprovidos de experiência e contexto social e interpessoal.

Do que estamos a falar, então, é claramente centrado na cognição e completamente individualista. O foco está no indivíduo e no seu pensamento abstraído do contexto.

Não é surpreendente que os tipos de psicoterapia atualmente utilizados na PAP sejam os que partilham suposições e enviesamentos consonantes. Nomeadamente, o grupo de terapias Cognitivo-Comportamentais (TCC).

A TCC clássica é o que poderíamos chamar de teoria psicoterapêutica principal de um grupo de terapias que se intitula de TCC (geralmente expressa em termos de ‘gerações’). A premissa central da TCC clássica é a de que o sofrimento emocional e psicológico decorre principalmente de crenças, atitudes ou outras estruturas cognitivas que a pessoa possui e que são irracionais ou erróneas.

Para a TCC, o objetivo geral da psicoterapia é corrigir eficazmente os erros de tal pensamento. O papel do terapeuta é desafiar crenças e atitudes subjacentes e/ou utilizar ‘experiências’ comportamentais, que procuram interromper os ciclos entre pensamento, sentimento e comportamento que se acredita causarem o sofrimento emocional envolvido.

A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), parte da chamada “terceira geração” de Terapias Cognitivo-Comportamentais, atualmente tem influência nas principais instituições (ex: Imperial College e John Hopkins). Embora a ACT e os modelos relacionados de ‘terceira-geração’ baseados no mindfulness ofereçam um conjunto de pressupostos mais subtil e sofisticado sobre o indivíduo e efeitos da mudança psicoterapêutica, os problemas essenciais do enquadramento ICC continuam, no entanto, a ser os mesmos.

Em todos os casos, a questão é entendida no ou com o indivíduo. A solução é considerada como sendo encontrada no poder corretivo de um terapeuta que, de outra forma, não seria implicado. A importância desta questão tornar-se-á clara a seguir.

Agora, embora isto possa soar exatamente como a terapia é, ou é suposto ser, isto tem muito mais a ver com o poder e recursos por detrás deste tipo de abordagens do que com qualquer coisa necessária sobre os seus pressupostos.

Porque é que a estrutura individualista e centrada na cognição tem falhas?

Estes modelos estão a falar a mesma língua porque assumem o mesmo quadro filosófico. Este quadro, contudo, não é algo que esteja cientificamente comprovado. Na realidade, nem sequer é algo fundado numa filosofia bem aceite. Pelo contrário, baseia-se essencialmente num conjunto de suposições ultrapassadas da era do iluminismo, que não resistiram ao teste do tempo.

A ideia estrangeira de que a ‘mente’ está separada dos outros e do mundo e é a sede exclusiva da experiência e identidade surgiu principalmente através da filosofia de Descartes e dos empiristas britânicos nos séculos XVII e XVIII.

Embora esta filosofia fundamental tenha sido largamente abandonada fora da psicologia e psiquiatria, ela perseverou nas disciplinas psi (isto é, psicologia e psiquiatria). Isto deve-se principalmente ao facto de ser altamente conveniente para se fazer os tipos de investigação empírica quantitativa que ganha a aceitação e prestígio associados às ‘ciências duras’. As disciplinas psi têm sido historicamente muito inseguras a este respeito e, como resultado, ainda mais ardentes nas suas identificações com tais filosofias.

Para os nossos propósitos aqui, existe uma razão chave bem estabelecida que coloca problemas irresolúveis para este enquadramento. Isto vem da investigação em matéria de desenvolvimento.

Na sua encarnação psicológica, o enquadramento ICC tem sido baseado no pressuposto de que chegamos a este mundo como sujeitos internos, experiencialmente privados e com pouca correspondência com o ‘mundo exterior’ e os seus outros fundamentais. Este modelo derivou principalmente de Freud e Piaget, os quais assumiram ambos o mesmo fundo filosófico do século XIX.

A noção de desenvolvimento psicológico que surgiu a partir deste ponto de partida preocupava-se em ligar a experiência interna com coisas de outro modo desconhecidas, através de representações internas, que tinham de ser centralizadas para explicar a ligação. A totalidade da psicologia e psiquiatria académica ocidental seguiu mais ou menos este princípio.

Consequentemente, a psicologia tornou-se centrada no indivíduo e nas suas construções internas, em vez do que está a acontecer no seu mundo e com os outros.

A investigação infantil ao longo das últimas décadas, contudo, tem demonstrado conclusivamente que estes pressupostos são falsos. De facto, mostra o completo oposto dos pressupostos do modelo ICC.

Sabemos agora que chegamos a este mundo conscientes de, e psicologicamente sintonizados com, outros primários desde o início. Mostrou-se que bebés e cuidadores se envolvem numa troca intersubjetiva íntima desde o início. E é isto, e não processos cognitivos internos, que constitui a base do desenvolvimento psicológico (ex: Beebe & Lachamn, 1993, 2014; Fonagy et al., 2002; Meltzoff & Moore, 1998; Stern, 1978; Stern et al., 1985; Trevarthen e Hubley, 1978; Trevarthen, 1979, 2010; Tronik, 2007).

Não somos os sujeitos isolados que se assumiu sermos, mas sim seres sociais e experiencialmente abertos que estão inextricavelmente ligados ao mundo e a outros primários desde o nascimento.

As implicações disto não podem ser sobrestimadas. Como escreveu Trevarthen, importante investigador infantil, em 2010: “a história da infância humana contada por filósofos e ciências médicas e psicológicas foi reescrita” (2020; p.145).

Poder-se-ia legitimamente salientar que a PAP não está a fazer investigação ou psicoterapia com bebés. No entanto, a posição sobre a nossa natureza psicológica básica não tem apenas a ver com desenvolvimento. Diz-nos algo vital sobre os nossos “selves” psicológicos e experienciais nucleares e representa o núcleo da psicologia subsequente, em torno do qual todas as outras ideias e teorias são construídas.

No presente contexto, o que isto significa é o seguinte: se não somos, em primeiro lugar e acima de tudo, indivíduos privados, mas sim inerentemente seres relacionados intersubjetivamente, então o sofrimento psicológico e emocional e o que o alivia é algo que acontece entre pessoas – não dentro do cérebro ou da mente individual.

Isto tem implicações óbvias para a PAP e, na verdade, para toda a psicoterapia.

2. A Mudança para a Terapia Relacional

O leitor não o saberia com base na literatura sobre PAP, mas tem havido uma explosão de teoria e prática ‘relacional’ e ‘intersubjetiva’ na psicoterapia e disciplinas relacionadas ao longo das últimas décadas. Vemo-la no ressurgimento da psicanálise nas suas formas relacionais e intersubjetivas. Vemo-la no enfoque nas terapias humanistas existenciais. Assim como as terapias feministas e orientadas para a justiça social sobre o ‘aqui e agora’ da relação. E vemo-la mais geralmente no papel central que a investigação da vinculação está a desempenhar nas várias teorias e práticas psicoterapêuticas (não-TCC).

Muito disto se baseia na, ou é informado pela, mudança de desenvolvimento descrita acima. Está também centralmente ligada à repetida descoberta de que a ‘aliança terapêutica’ entre o terapeuta e o cliente é o melhor preditor de resultados terapêuticos (ver: Horvath et al., 2011).

Fora da psicologia e psiquiatria institucionais, tem havido uma mudança decisiva do funcionamento interno da mente/cérebro para um enfoque nos processos e dinâmicas interpessoais.

Foi suplantado o tipo de foco de cientista-à-distância descomprometido sobre as construções internas e utilização de técnicas específicas (ou seja, padrões de pensamento desafiantes, experiências comportamentais, interpretações, etc). Agora é a relação terapêutica em curso que é entendida como o agente-chave da mudança. Mais uma vez, o leitor não teria qualquer ideia sobre isto com base na leitura da literatura de PAP.

Não é o que o terapeuta pode fazer pelo cliente em termos de intervenções específicas. É ‘quem’ podem ser para eles na relação terapêutica que é. O objetivo é desenvolver um tipo particular de experiência segura, interpessoalmente rica e autêntica. É a capacidade permanente do terapeuta para reflexão/exploração empática, regulação interpessoal do afeto e emoção e comunicação autêntica deliberada que desempenha o papel mais importante.

Crucialmente, estas não são ações que alguém faz ou toma, são mais formas de estar com o outro. E aqui encontramos a diferença chave: a terapia relacional tem a ver com facilitar uma relação ao longo do tempo. Algo que está em forte contraste com as poucas sessões de ‘integração’ cognitiva que a atual PAP emprega com base no modelo ICC.

3. É Hora da PAP Relacional?

Curiosamente, há referência a temas relacionados na própria literatura da PAP. Watts, que usa uma forma de ACT, por exemplo, relata que “O feedback até agora sugere que o aspeto da terapia mais apreciado pelos doentes tem sido sensivelmente apoiado por prestadores de cuidados presentes e respeitosos. Os temas relacionados com uma ausência de empatia precisa no início de vida emergem para muitos dos nossos doentes.” (Watts & Luana, 2020; p.99).

Estas são preocupações relacionais interpessoais. Temos de nos questionar por que razão os modelos empregues na PAP são modelos individualistas e centrados na cognição que minimizam e negligenciam estes fatores? Também temos de nos perguntar, como é que apenas algumas sessões de ‘integração’ (a norma nestas abordagens) se aproximam ou podem aproximar-se de responder a estas questões?

Em suma, não podem.

Também não é, de modo algum, surpreendente que se tenha descoberto que os efeitos de melhoria da utilização dos modelos atuais de PAP foram limitados no tempo, a cerca de 6 meses (Nutt et al., 2020). De uma perspetiva relacional, quando se regressa à dinâmica relacional habitual, às situações e a outras pessoas com interesses adquiridos de que as coisas permaneçam na mesma, é provável que uma mudança na visão de si próprio se dissolva na maré. De facto, ouvimos relatos anedóticos sobre exatamente isto.

Um modelo individualista utilizado durante um período muito curto simplesmente não é adequado para uma mudança sustentada. Precisamos de um enquadramento relacional.

É necessário algo muito diferente, que vai para além da mudança cognitiva e comportamental. Para compreender o que seria a PAP dentro de um enquadramento relacional, precisamos de deixar para trás a ideia de que são as cognições de uma pessoa que precisam de mudar. Precisamos também de deixar para trás a ideia de que as pessoas têm necessidade de uma fonte externa para lhes fornecer algum tipo de solução. Juntamente com isto – e aqui está o senão – precisamos de deixar para trás a ideia de que uma mudança significativa e sustentada deve ocorrer rapidamente.

Uma abordagem terapêutica relacional seria utilizar a experiência psicadélica para facilitar um tipo de experiência relacional diferente e concebivelmente mais profunda dentro de uma relação terapêutica já estabelecida.

Teria de ser desta forma porque não existe uma ‘solução rápida’ de uma perspetiva relacional. De facto, a procura de soluções rápidas é, em algum sentido importante, exatamente o que já não funcionou previamente para a pessoa.

Se somos principalmente seres relacionais e o que estamos a tentar abordar está principalmente ao nível relacional interpessoal, então a resposta precisa de ser em conformidade. Isto não pode ser conseguido numa experiência discreta a ser ‘integrada’, por muito conveniente que tal possa ser para fins de investigação, financiamento ou expediente político. Falando em termos relacionais, a mudança apenas acontece de forma crescente, ao longo do tempo.

Se os psicadélicos pudessem aumentar a ‘profundidade relacional’, então há razões para pensar que o emprego de uma PAP relacionalmente moldada pode, de facto, proporcionar uma melhoria muito mais real e sustentada que a atual PAP parece ser incapaz de proporcionar.

4. Terapia Relacional – Em Conclusão

Voltemos à questão do porquê da ICC dominar. É importante saber que os ‘modelos relacionais’ existem desde o início da psicologia e da psicoterapia.

Tem havido, de facto, uma vertente consistente deste pensamento que remonta à era freudiana. E através do trabalho de Ferenczi, Sullivan e Winnicott – para citar apenas os mais influentes. Além disso, modelos interpessoais da mente também têm existido na filosofia desde a fenomenologia do início e meados do século XX (isto é, Heidegger e Merleau-Ponty).

O facto bruto é que tudo isto tem sido ignorado, negado até, pela psicologia e psiquiatria académicas e institucionais ao longo das décadas, simplesmente devido aos interesses ideológicos adquiridos no pensamento cognitivo e biomédico que têm dominado.

Vou terminar salientando que esta não é apenas uma questão académica ou prática. É, de facto, uma questão ética séria. Se o que disse acima é verdade, então a atual configuração da PAP não só não consegue chegar às raízes da questão, como na realidade serve para distanciar mais ainda as pessoas daquilo que realmente as ajuda.

Se agora não é o momento de impor uma mudança, então quando o será?

Artigo Original de James Barnes, publicado naHealing Maps a 14/03/2022.

Tradução livre por Patrícia Marta



Patrícia Marta
Patrícia Marta
Médica de Psiquiatria | Membro Satélite SPACE

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