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Uso Clínico de Psicadélicos em Portugal: a que ritmo decorre, afinal, a investigação clínica e a sua implementação nos sistemas de saúde portugueses?

26 de janeiro de 2025

Publicado esta semana, um artigo da SIC Notícias, intitulado “Tratar doenças mentais com psicadélicos: experiências podem ser extraordinariamente intensas e significativas”, aborda um tema de crescente relevância na Psiquiatria contemporânea. A discussão em torno da aplicação terapêutica de psicadélicos, como a psilocibina, LSD, cetamina e MDMA, tem atraído atenção global, fazendo prometer alternativas potencialmente inovadoras para condições clínicas de acrescido desafio no seu tratamento, como a Depressão Resistente ao Tratamento (DRT) ou a Perturbação de Stress Pós-Traumático (PSPT). Contudo, o texto enfatiza a necessidade de mais investigação científica para validar a eficácia e segurança destas substâncias, um ponto central e inquestionável.

O ponto de partida deste texto é o excelente artigo científico recentemente publicado no American Journal of Psychiatry, fruto de uma colaboração internacional na qual participou o médico psiquiatra e investigador português Albino Oliveira-Maia, entrevistado nesta peça jornalística. Porém, o texto jornalístico subestima a posição de Portugal no panorama europeu no que respeita à implementação clínica destes tratamentos, ignorando avanços significativos já alcançados no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Especificamente, o país destaca-se entre os demais países europeus como um dos pioneiros na integração do uso da cetamina para tratar pessoas com quadros depressivos refratários. O artigo é também omisso sobre o facto, relevante para o tema, de que a investigação clínica com cetamina é suficiente para que este medicamento faça parte das principais guidelines internacionais de tratamento de Depressão.

A cetamina é um medicamento formalmente aprovado como anestésico e de uso comum em contextos hospitalares que, em doses sub-anestésicas e segundo uma utilização “off-label”, apresenta propriedades antidepressivas com considerável eficácia e segurança nesta população de doentes. A cetamina é, também, reconhecida como um medicamento que desencadeia um “efeito psicadélico” nessas mesmas doses, sendo a única substância deste tipo cujo uso clínico se encontra mundialmente difundido, assente na sua integração nas principais diretrizes de tratamento, enquanto outras substâncias psicadélicas aguardam ainda aprovação regulamentar ou estudos adicionais para aplicação clínica.

Neste texto, é abordada a importância de equilibrar o desenvolvimento de investigação científica com a implementação prática, contextualizando o panorama português neste campo emergente.

A Relevância da Investigação em Psicadélicos

A aplicação terapêutica de substâncias psicadélicas baseia-se em mecanismos inovadores que diferem significativamente dos psicofármacos convencionais. Enquanto antidepressivos tradicionais, como os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), atuam ao longo de semanas ou meses para modular o humor, os psicadélicos parecem induzir alterações profundas e rápidas na neuroplasticidade cerebral, permitindo uma “reorganização” funcional em períodos significativamente mais curtos.

Ensaios clínicos realizados internacionalmente têm mostrado resultados promissores. Por exemplo, estudos com psilocibina demonstraram melhorias significativas em pacientes com Depressão Resistente ao Tratamento, muitas vezes após apenas uma ou duas sessões supervisionadas. O mesmo ocorre com o MDMA em casos de PSPT, com taxas de remissão clínica que excedem – não infrequentemente - as dos tratamentos convencionais.

Apesar disso, a comunidade científica concorda que os dados são, ainda, preliminares. Muitos dos estudos disponíveis têm amostras pequenas e desenhos experimentais que, embora muitas vezes rigorosos, carecem de replicação em larga escala. Adicionalmente, as experiências intensas e emocionalmente significativas que estas substâncias proporcionam podem não ser adequadas para todos os pacientes, sublinhando a necessidade de protocolos de segurança que se adequem a estas populações, particularmente vulneráveis.

Por todo mundo, a sentida necessidade de mais investigação é contraposta pelas barreiras legais e regulamentares associadas à classificação destas substâncias. A designação de muitas delas como substâncias de Classe I, incluindo a psilocibina e o LSD, dificulta a realização de ensaios clínicos devido aos processos burocráticos exigentes para aprovação de estudos. Este contexto é também ele verificado em Portugal, contribuindo para a escassez de dados nacionais sobre estas substâncias, colocando o país numa posição modesta em termos de produção científica nesta área. O CIBIT (Coimbra Institute for Biomedical Imaging and Translational Research), em Coimbra, e a Fundação Champalimaud, em Lisboa, têm sido entidades com interesse demonstrado na realização de estudos com psicadélicos, embora, até à data, Portugal tenha participado apenas em um ensaio clínico com psilocibina, estando o próximo ensaio (internacional e multicêntrico) previsto para iniciar recrutamento muito em breve, a cabo desta última instituição (privada). É, portanto, incorreta a informação de que “nos hospitais portugueses já decorreram, pelo menos, um ensaio com cetamina e outro com psilocibina”. De notar que várias instituições clínicas portuguesas (públicas e privadas) participaram, sim, num ensaio europeu multicêntrico utilizando escetamina, cujo coordenador nacional do estudo foi Albino Oliveira-Maia. A escetamina consiste num derivado farmacológico da cetamina, desenvolvido e patenteado como medicamento pela empresa Janssen Pharmaceuticals (uma subsidiária da Johnson & Johnson), que realizou ensaios clínicos multicêntricos que levaram à sua aprovação pela FDA e EMA como tratamento para a Depressão Resistente.

Portugal como um dos pioneiros na Implementação Clínica: O exemplo da Cetamina

Apesar das limitações na investigação, Portugal destaca-se como um dos primeiros países a integrar tratamentos psicadélicos (com cetamina) no sistema público de saúde. Outros exemplos de relevo encontram-se, por exemplo, no Reino Unido e no Canadá. Os tratamentos com cetamina estão atualmente disponíveis em cinco serviços de Psiquiatria do SNS para tratar depressão resistente, entre outras condições. Outros serviços encontram-se já em processos, mais ou menos avançados, de elaboração de protocolos clínicos para a mesma finalidade, uma vez que a cetamina é um fármaco de baixo custo e amplamente disponível nos hospitais. Este facto representa um marco importante, uma vez que demonstra a capacidade do país de adotar avanços terapêuticos com base em evidência científica e guidelines de tratamento internacionais.

A cetamina, embora não seja tradicionalmente considerada um psicadélico clássico (mas sim um “psicadélico atípico”, por ter um mecanismo de acção diferente), compartilha algumas características com estas substâncias, incluindo a capacidade de induzir alterações temporárias do estado de consciência e promover aumento da neuroplasticidade nos dias seguintes à sua administração. O seu uso clínico é suportado por um corpo substancial de evidência científica acumulada ao longo de décadas de investigação que comprova a sua eficácia em reduzir sintomas depressivos, muitas vezes de forma rápida, especialmente em pacientes que não respondem eficazmente a outros tratamentos. Contrariamente a outros psicadélicos, como a psilocibina ou o LSD, este psicadélico tem uma duração de efeitos bastante mais curta (cerca de 1 hora), o que facilita a sua integração nos sistemas de saúde, fazendo diminuir as necessidades no que diz respeito aos recursos materiais e humanos exigidos, uma questão pertinente levantada no artigo citado. Não obstante, e apesar de ser um fármaco globalmente seguro em contextos clínicos, é também um medicamento que, tal como outros, apresenta alguns riscos conhecidos e outros ainda por determinar, sobretudo a longo-prazo, motivo pelo qual os protocolos em curso privilegiam ciclos curtos de tratamento ao invés de infusões por duração indeterminada.

Em serviços de Psiquiatria do SNS, como os do Hospital de São João, no Porto, ou do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, a administração de cetamina segue protocolos rigorosos, devidamente aprovados por diversas comissões hospitalares, envolvendo equipas multidisciplinares e monitorização cuidadosa dos pacientes. Este nível de implementação coloca Portugal numa posição pioneira a nível europeu, sendo um dos poucos países a oferecer, sem quaisquer custos para os utentes, este tratamento no sistema público de saúde.

Paralelamente, existem já, de Norte a Sul do país, algumas equipas clínicas que disponibilizam o tratamento com cetamina em contextos privados, o que tem permitido um acesso mais expandido a esta possibilidade terapêutica. Contudo, e ao contrário de países como a Alemanha, a comparticipação dos custos das sessões com cetamina em contextos privados não é, para já, garantida por parte de empresas de Seguros de saúde, o que configura uma importante limitação quanto a um desejável acesso mais equitativo por parte da população.

Contrariamente ao indicado na peça jornalística, a experiência acumulada de apoio às várias centenas de pacientes já tratados por estas equipas têm vindo a dotar os profissionais que as integram de uma cada vez mais elevada competência clínica, possivelmente difícil de alcançar em ensaios clínicos, quer pela sua escassez, quer pelo número – reconhecidamente pequeno – de participantes que os integram. A SPACE dinamiza, inclusivé, um grupo mensal de Intervisão clínica que conta com cerca de duas dezenas de profissionais. Discordamos, por isso, com Albino Oliveira-Maia quando refere que os “psicólogos mais preparados são aqueles que já fizeram parte dos ensaios clínicos”, pelo menos ao que o contexto português diz respeito. Deste modo, para além dos centros de investigação, é também essencial que seja partilhada a experiência dos profissionais de saúde que estão a aplicar estes tratamentos nos hospitais em Portugal. Essa partilha de experiência foi, aliás, um dos principais objetivos que motivou a realização de um simpósio dedicado ao tema no XVIII Congresso Nacional de Psiquiatria, realizado em outubro de 2024, onde três das equipas que disponibilizam este tratamento no SNS partilharam não só a sua experiência, mas também dados que têm mostrado efetividade e segurança no mundo real.

Outro tema mencionado no texto é a escassez de evidência científica relativamente à intervenção psicológica do modelo terapêutico com psicadélicos, algo que tem sido debatido pela comunidade científica. Em 2022, uma meta-análise que incluiu 55 artigos, caracterizou com detalhe as intervenções psicológicas implementadas em combinação com a administração de substâncias psicadélicas (LSD, psilocibina, MDMA, ayahuasca, cetamina, DMT, 5-MeO-DMT e mescalina), identificando como principais modelos: Terapia Cognitivo-comportamental, Terapias de terceira geração baseadas no Mindfulness, Motivational Enhancement Therapy e intervenções de grupo, como a Brief Supportive Expressive Group Therapy e a Human Relations Training Laboratory Group. O mesmo artigo conclui que há aspetos estruturais dos modelos de intervenção psicológica recorrentemente espelhados na literatura publicada, embora reconheça a necessidade de uma descrição mais exaustiva relativamente aos mesmos, algo que foi novamente destacado numa publicação recente com autores portugueses. Parece, portanto, redutor afirmar a inexistência de dados nesta área. Assim, mesmo apesar da necessidade de mais investigação, importa realçar que nos protocolos aprovados pelas direções clínicas dos hospitais em que a administração de cetamina é combinada com suporte psicoterapêutico, este último é naturalmente influenciado pela experiência e formação teórico-prática das suas equipas multidisciplinares.

Contradições na Perceção da Realidade Portuguesa

Portugal parece, de facto, estar mais avançado na utilização prática destas abordagens do que na produção de estudos primários sobre estas substâncias, refletindo um desequilíbrio que merece ser analisado.

A relativa ausência de investigação científica pode ser atribuída, em grande parte, às barreiras estruturais que os investigadores portugueses enfrentam. O financiamento limitado para a investigação em Saúde Mental, combinado com os entraves burocráticos associados à aprovação de ensaios clínicos (particularmente agravado considerando tratar-se de substâncias controladas), torna a realização de estudos com psicadélicos um processo incerto, e previsivelmente longo e dispendioso. Além disso, a perceção pública e política destas substâncias como drogas recreativas ilícitas continua a influenciar negativamente a aceitação social e institucional dos seus potenciais benefícios terapêuticos. Muito do trabalho que a SPACE tem vindo a realizar é, precisamente, no sentido de divulgar aquilo que a Ciência tem demonstrado sobre a eficácia e segurança destas substâncias, quando utilizadas em contexto adequado, mas também sobre os desafios éticos e regulamentares que as acompanham. No entanto, os receios provenientes de décadas de Proibição das mesmas constituem uma reconhecida dificuldade a ultrapassar.

Paradoxalmente, enquanto Portugal enfrenta dificuldades na investigação clínica utilizando psicadélicos, os profissionais de Saúde Mental portugueses têm demonstrado uma notável abertura para incorporar estas substâncias (e, particularmente, a cetamina) na sua prática clínica, conforme demonstrou um recente estudo, que se encontra em fase de publicação. Este contraste sublinha uma questão crítica: será que a priorização da aplicação clínica de um fármaco já disponível (cetamina), em detrimento da produção científica de ensaios envolvendo outros psicadélicos, compromete o progresso da integração destes modelos terapêuticos em Portugal? Ou, pelo contrário, será que esta abordagem pragmática coloca o país na vanguarda da acessibilidade terapêutica para os seus cidadãos, estimulando simultaneamente a produção de dados de Evidência de Mundo-Real (Real-World Evidence, RWE)?

Questionamo-nos, ainda, de que modo um desejável aumento da disponibilidade de tratamentos com cetamina em serviços públicos de saúde (e respeitando as mais recentes guidelines de tratamento internacionais) colocaria em causa a comercialização e (também ela desejável) integração de um dos seus derivados (escetamina) nestes serviços. É do interesse da população - e também dos clínicos - que todas as ofertas terapêuticas possam estar disponíveis. Para tal, é exigida uma comunicação factual e livre de conflitos de interesses.

Um possível caminho a seguir: Investigar e Implementar em harmonia

Para que Portugal se afirme como um elemento importante no contexto europeu tanto na investigação como na implementação de tratamentos psicadélicos, é essencial adotar uma abordagem integrada que promova o equilíbrio entre as duas vertentes. Algumas recomendações podem incluir:

  • Facilitação de Ensaios Clínicos: A revisão – a nível global - das regulamentações impostas sobre substâncias controladas é crucial para simplificar os processos de aprovação de estudos clínicos. O reconhecimento pelas entidades reguladoras do medicamento e comissões de investigação nacionais de que as perturbações psiquiátricas resistentes aos tratamentos disponíveis constituem uma prioridade de investigação em Saúde deverá incitar a uma maior urgência no estudo de novas opções terapêuticas, procurando facilitar o processo de avaliação e eventual aprovação de ensaios clínicos. Estas medidas permitiriam aos investigadores explorar novas abordagens terapêuticas de forma mais célere, promovendo uma produção científica nacional mais robusta.
  • Investimento em Investigação: o desenvolvimento em Portugal de várias equipas em diferentes centros clínico-académicos dedicados à ciência psicadélica, devidamente equipados para conduzir ensaios clínicos e estudos translacionais, poderia ajudar a colocar Portugal como um dos vários pontos de referência internacional nesta área, integrando ensaios multicêntricos por parte de organizações internacionais.
  • Educação e Sensibilização: Promover campanhas de sensibilização dirigidas ao público e aos decisores políticos pode ajudar a desmistificar os psicadélicos, reduzindo o estigma e fomentando um ambiente mais favorável à sua aceitação. Iniciativas como a PsychedeliCare – recentemente lançada e na qual Portugal também participa – poderão ser uma das formas mais eficazes para determinar ação política que possa vir a proporcionar um aumento substancial de investigação nesta área.
  • Continuidade na Implementação Clínica: Manter e expandir os serviços do SNS que oferecem tratamentos com cetamina, ao mesmo tempo que decorre um aumento no investimento na Saúde Mental em Portugal, é essencial para garantir que os avanços científicos se traduzam em benefícios concretos para os pacientes. Reduzir desigualdades regionais no acesso ao tratamento deve constituir uma das prioridades atuais, assim como desenvolver programas de formação contínua para psiquiatras e psicólogos, de forma a garantir que estes estejam devidamente preparados para integrar estes tratamentos na sua prática clínica.

Em conclusão, reconhecemos que a integração de modelos terapêuticos utilizando psicadélicos na prática psiquiátrica representa uma fronteira emergente no tratamento de perturbações psiquiátricas, combinando promessas científicas com desafios éticos, legais e práticos. Em Portugal, o panorama é marcado por um contraste evidente: enquanto a investigação científica enfrenta limitações significativas, os profissionais e o SNS demonstram abertura para a implementação de tratamentos com psicadélicos.

Este desequilíbrio, longe de ser uma fraqueza, pode ser interpretado como uma oportunidade para repensar a abordagem nacional neste campo. Ao combinar a excelência prática já demonstrada com um esforço renovado na produção científica, Portugal tem o potencial de se afirmar como uma importante peça europeia no uso clínico de psicadélicos, assegurando simultaneamente o rigor científico e a acessibilidade terapêutica que esta área exige.