Cetamina: O Outro Lado da Moeda
2 de agosto de 2024 • 9 minutos de leitura
- Gonçalo Soares
- Ketamina
A viragem do milénio trouxe consigo uma importante redefinição do imaginário coletivo da sociedade ocidental acerca das substâncias psicadélicas. Se a política War on Drugs dos anos 60 ditou as regras do jogo até aos anos 2000, impedindo avanços científicos com uma visão enviesadamente alarmista e negativista, o século XXI veio renovar o ar numa espécie de “renascimento psicadélico” que trouxe para a esfera popular o reconhecimento do potencial terapêutico dos chamados psicadélicos.
Como descrito por David Yaden (2022), é frequente que mudanças profundas como esta sejam acompanhadas de diferentes tipos de reação, tanto pelo público em geral como pela comunidade científica. O primeiro passo é, normalmente, a hype bubble – uma expectativa crescente construída com base no lado positivo de qualquer tipo de inovação, mas que, como a história nos tem revelado, é seguida de uma contrarreação de desilusão assente numa realidade mais crua e num ceticismo contraproducente. É da luta destas duas forças antagonistas que surge o “plateau de produtividade”, o patamar em que a sociedade e a comunidade científica estão conscientes do potencial e da realidade despida da ilusão do hype (ver figura 1).
Yaden aplica esta análise ao momento que as substâncias psicadélicas atravessam – o seu potencial para a saúde mental foi revelado, o hype gerou-se, as expectativas estão altas e a Contracultura dos anos 60 acabou, ou seja, os psicadélicos são agora mainstream. Como devemos preparar-nos para o rebentar da bolha? Podemos amenizar a contrarreação?
A SPACE acredita que no caminho do meio está a virtude. Entre a hype bubble e o ceticismo alarmista existe conhecimento profícuo que deve ser integrado para que o caminho possa continuar a ser o mais positivo possível. Neste artigo, focamo-nos especificamente no trajeto da única substância psicadélica que, ao dia de hoje, é utilizada legalmente em Portugal para o tratamento de perturbações mentais: a cetamina (ou ketamina).
Figura 1 – O ciclo do hype, in referência [5]
Segundo o Observatório Europeu de Drogas e Toxicodependência (OEDT), sediado em Lisboa, o consumo recreativo de cetamina tem vindo a aumentar drasticamente nos últimos anos, precisamente desde o virar do milénio – uma inferência feita a partir do número de apreensões feitas pelas forças de segurança e pela análise das águas residuais de várias cidades europeias (ver figura 2). Isto significa que, paralelamente ao promissor caminho que a cetamina tem vindo a contruir no tratamento da Perturbação Depressiva Resistente, o seu consumo recreativo (fora do contexto terapêutico e de investigação) tem vindo a banalizar-se. Os efeitos procurados pelos consumidores são, sobretudo, os que surgem associados ao consumo de doses menores, tais como o relaxamento, a euforia e as alterações produzidas ao nível da cognição (Kolp, E., et al., 2014). A busca destes efeitos é acompanhada por ideias partilhadas pelos consumidores de que a cetamina é um alucinogénico seguro, potente, não tóxico e com poucas ou nenhumas reações adversas, sendo aceite como “o único psicadélico que não produz reações de ansiedade ou de medo” (Kolp, E., et al., 2014).
Figura 2 – Número de apreensões de cetamina na UE, in referência [6]
Ora, se a literatura científica tem sido muito fértil na produção e divulgação da evidência dos efeitos positivos da cetamina ao nível do humor, da neuroplasticidade e de vários outros sintomas cognitivos das perturbações depressivas (falamos de vários milhares de artigos publicados desde o início do milénio), a comunicação social tem tido um papel determinante na distribuição deste conhecimento, contribuindo de forma determinante para o imaginário coletivo acerca desta substância. Contudo, o eventual reverso da moeda é raramente mencionado, algo espectável por nos encontrarmos no primeiro passo da curva da figura 1 – o hype bubble. Mas será que a idealização desta substância e a banalização do seu consumo é realmente desprovida de consequências negativas para a saúde das pessoas? E será que contribuirá positivamente para o objetivo a que a comunidade científica se propõe – o de chegar a um sóbrio patamar de produtividade que beneficie a generalidade dos cidadãos?
Se por um lado parece ser verdade que, de forma aguda, a cetamina é uma substância cuja utilização episódica e limitada no tempo é bastante segura, com poucos efeitos adversos ao nível da respiração e da função cardiovascular, o mesmo parece não se verificar quando falamos do seu consumo crónico. Em primeiro lugar, importa clarificar que a cetamina é, ao contrário das substâncias psicadélicas clássicas (como a psilocibina ou o LSD), uma substância com potencial aditivo comprovado – provoca tolerância (necessidade de doses cada vez maiores para atingir o efeito desejado), craving (um desejo intenso e muitas vezes incontrolável de consumir) e tem efeitos deletérios muito palpáveis na esfera legal, profissional e interpessoal dos seus consumidores (Beardsley & Balster, 1987; Kolp et al., 2014). Em segundo lugar, cabe-nos distinguir o contexto terapêutico do contexto recreativo: enquanto o primeiro obedece a guidelines internacionais que têm vindo a ser elaboradas com base na eficácia do tratamento e na segurança dos pacientes (minimizando a exposição à substância); o segundo não costuma reger-se por qualquer normativa sobre a segurança do consumo, sendo catalisada pela ideia generalizada de ausência de consequências negativas e pelo problema real da tolerância, expondo os consumidores recreativos a doses cada vez maiores, numa frequência cada vez maior e com mais riscos associados. Por último, parece-nos relevante referir que, atualmente, estão a ser praticados diferentes modelos terapêuticos, tanto em Portugal como no resto do mundo, sendo o da Psicoterapia Assistida por Cetamina (vide artigo “Uma Abordagem Integrativa dos Modelos Biomédico e Psicadélico no Tratamento com Cetamina” no blogue da SPACE) aquele que menos expõe os pacientes aos riscos a longo prazo da substância.
O que é que se sabe sobre os efeitos a longo prazo do abuso de cetamina?
Para além da síndrome de dependência que já descrevemos, a evidência científica aponta alguns efeitos deletérios, tanto a nível do Sistema Nervoso Central (SNC) como noutros sistemas do nosso organismo. Os mais reconhecidos pela maioria dos leitores serão os relacionados com o aparelho genito-urinário, uma vez que existe um impacto direto da substância e dos seus metabolitos nas células intersticiais da bexiga, provocando inflamação que pode causar úlceras e cistite intersticial. Isto pode provocar dor aguda e crónica ao urinar, sensação de urgência miccional e sangue na urina. Tem também vindo a ser verificado um padrão colestático de hepatoxicidade associada ao abuso de cetamina (Shahani et al., 2007; Chu et al., 2008; Tsai et al., 2009; Mason et al., 2010; Meng et al., 2013; Skeldon and Goldenberg, 2014).
A nível cerebral, existe evidência (em primatas) de que o uso crónico de cetamina induz a apoptose e a necrose de neurónios no córtex pré-frontal, afetando negativamente a memória de trabalho, a memória episódica e ainda outros aspetos da função executiva, como a capacidade de planeamento (Slikker et al., 2007; Sun et al., 2014), reduzindo também os níveis de bem-estar a longo prazo e dificultando o tratamento de perturbações depressivas graves (Lian-Yu Chen et al., 2020). A administração diária e persistente de cetamina em ratos e primatas foi relacionada com o aumento de concentrações da proteína tau hiperfosforilada, uma proteína que está aumentada em síndromes demenciais, como a Doença de Alzheimer (Yeung et al., 2010). Em humanos, foi verificada uma diminuição do volume cerebral nos lobos frontais, parietais e temporais que coincidiu temporalmente com o início do abuso desta substância (Wang et al., 2013). Tem também sido colocada a hipótese de que o abuso de cetamina pode vir a produzir efeitos a longo prazo semelhante ao que acontece com o alcoolismo, dado que partilham mecanismos neurofisiológicos de antagonismo crónico dos recetores de glutamato NMDA.
Conclusão
Por mais promissores que sejam os avanços da investigação e da prática clínica em Psiquiatria e Saúde Mental sobre a aplicação de cetamina no tratamento de perturbações mentais graves, como a depressão resistente ao tratamento, é importante reconhecer o ponto de situação atual: o mediatismo que este assunto tem recebido tem surtido efeitos muito positivos (a partilha de conhecimento relevante, a motivação para mais investigações, etc...) e tem contribuído de forma determinante para que as pessoas possam beneficiar desta inovadora opção de tratamento. Contudo, é importante que a comunidade científica também passe a mensagem de que falar de tratamento não é o mesmo que falar de abuso e que o contexto clínico em que esta substância é aplicada não é transponível para a pista de dança numa rave ou para qualquer outro cenário de consumo recreativo. A exposição à substância é diferente, os riscos associados também e o proveito clínico que se retira da aplicação de cetamina pode ser deturpado.
A SPACE acredita que, face à evidência de que o consumo recreativo de cetamina tem aumentado drasticamente nas últimas décadas, é importante traçar esta linha. A par da informação científica acerca do seu potencial terapêutico, a evidência dos riscos associados ao consumo recreativo de cetamina deve ser conhecida.
Bibliografia
- Garel N., et al. (2023). The Montreal model: an integrative biomedical-psychedelic approach to ketamine for severe treatment-resistant depression. Frontiers in Psychiatry 14:1268832.
- Kolp, E., et al. (2014). Ketamine psychedelic psychotherapy: Focus on its pharmacology, phenomenology, and clinical applications. International Journal of Transpersonal Studies, 33(2), 84–140.. International Journal of Transpersonal Studies, 33 (2).
- Green, S., et al. (2011). Clinical practice guideline for emergency department ketamine dissociative sedation: 2011 update. Annals of emergency medicine, 57(5), 449–461.
- Panos Zanos, et al. (2018). Ketamine and Ketamine Metabolite Pharmacology: Insights into Therapeutic Mechanisms. Pharmacological Reviews July 2018, 70 (3) 621-660.
- Yaden DB., et al. (2022). Preparing for the Bursting of the Psychedelic Hype Bubble. JAMA Psychiatry. 2022;79(10):943–944
- European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (2023), European Drug Report 2023: Trends and Developments, https://www.emcdda.europa.eu/publications/european-drug-report/2023_en
- Stahl S., (2021). Stahl’s Essential Psychopharmacology – Neuroscientific Basis and Practical Applications, 5th edition, Cambridge Press;
- Vines, L., et al. (2022). Ketamine use disorder: preclinical, clinical, and neuroimaging evidence to support proposed mechanisms of actions. Inteligent Medicine Volume 2, Issue 2, May 2022, Pages 61-68.
- Chen, L. Y., et al (2020). Association of Craving and Depressive Symptoms in Ketamine-Dependent Patients Undergoing Withdrawal Treatment. The American journal on addictions, 29(1), 43–50.
Artigo original de Gonçalo Soares (Médico e Membro Satélite da SPACE).
Gonçalo Soares
Mais posts
- Pedro Mota
- Psilocibina
A psilocibina pode influenciar o cérebro durante semanas, segundo estudo recente [Nature]
Investigadores esclarecem como o psicadélico pode distorcer a sensação de espaço, tempo e identidade durante uma sessão. A psilocibina, en...
- Miguel Rosa
- Psicadélicos
Terapeutas psicadélicos devem ser treinados para estabelecer limites de cariz sexual
A experiência de sentir energia sexual ou de ter memórias durante estados psicadélicos pode conjurar feridas profundas podendo promover mais...